Lélia Gonzalez, ícone do feminismo negro, vive renascimento nos 30 anos de sua morte

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Lélia Gonzalez está de volta à terra natal. Desde o dia 30 de junho, a antropóloga, referência para os movimentos negros e feministas, fica de pé ao lado da escritora Carolina Maria de Jesus no Parque Municipal de Belo Horizonte. A homenagem é uma das várias que buscam fazer mais presente a imagem da intelectual, morta há 30 anos.

A jornalista e pesquisadora Etiene Martins foi a idealizadora e responsável por articular com a prefeitura a instalação das primeiras estátuas de bronze de pessoas negras na capital mineira.

“Uma cidade que tinha estátua de bicho, tinha estátuas de objetos, mas nenhuma de pessoas negras. Por toda reflexão que Lélia trouxe e traz, é muito importante colocá-la no lugar que ela merece na nossa história e na nossa memória”, afirma.

A ideia surgiu depois de ver a estátua da bailarina Mercedes Baptista na região conhecida como Pequena África, no Rio de Janeiro.

“Eu não a conhecia e fiquei curiosa para saber quem era. Pensei que se fizesse a estátua de Lélia as pessoas também iam ficar curiosas”, explica Martins, que é mestre em relações raciais. A proposta é levar principalmente aos jovens uma visão sem estereótipos da população negra. “Quando eles se deparam com duas intelectuais negras, ambas com um livro na mão, é um incentivo”, diz.

De acordo com a Fundação Municipal de Cultura de BH, as duas foram escolhidas pela força e importância de suas obras para o pensamento nacional. “Essa inauguração marca um momento histórico para a cidade, pois reflete um avanço significativo na representação e valorização das mulheres negras na esfera pública e cultural”, diz o órgão.

Lélia Gonzalez morreu de infarto em 10 de julho de 1994, aos 59 anos, em sua casa no Rio de Janeiro. Foi em solo carioca que a mineira cresceu e estudou —fez história e geografia pela Universidade do Estado da Guanabara, atual Uerj, e depois estudou filosofia na mesma instituição.

Na cidade, a intelectual ajudou a fundar o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e deu aquele que é apontado como o primeiro curso sobre cultura negra do Brasil, na década de 1970. Foi também diretora do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.

Em setembro de 2023, o lar de Lélia na ladeira de Santa Teresa foi o primeiro a receber uma placa da Prefeitura do Rio e do Projeto Negro Muro que identifica imóveis de relevância para a memória negra.

“Aqui morou Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), autora, filósofa, antropóloga, política e intelectual de suma importância para o pensamento feminista negro brasileiro e latino-americano”, diz o texto fixado na parede do nº 106.

Em São Paulo, onde participou do ato de lançamento do Movimento Negro Unificado, nas escadarias do Theatro Municipal em 1978, Lélia foi uma das cinco personalidades negras escolhidas para serem homenageadas com uma estátua.

A consulta pública foi realizada em novembro após um levantamento indicar que, das 390 estátuas no acervo de obras públicas da cidade, apenas dez retratavam ou faziam menção a personalidades negras.

No Sesc Vila Mariana, também na capital paulista, está em cartaz a exposição “Lélia em Nós: festas populares e amefricanidade”, inspirado no livro “Festas Populares no Brasil”. A ação se insere no contexto de relançamento da obra de 1987, assinada por Lélia, pela editora Boitempo.

As curadoras Glaucea Britto e Raquel Barreto selecionaram artistas e obras históricas e contemporâneas, como fotografias, pinturas e vídeos, para abordar festas afro-brasileiras. A exposição vai até 24 de novembro.

O interesse do mercado editorial pelo trabalho de Lélia é relativamente recente. Etiene Martins cita como um dos propulsores desse resgate uma palestra da norte-americana Angela Davis em 2019, em São Paulo. Na ocasião, o ícone do feminismo negro declarou à plateia brasileira que “aprendia mais com Lélia Gonzalez” do que poderiam aprender com ela.

“No outro dia as pessoas foram procurar livros de Lélia Gonzalez e não tinha”, conta Martins.

Em 2020, a coletânea “Por um Feminismo Afro-Latino-Americano”, com ensaios e entrevistas da pensadora organizados pela pesquisadoras Flávia Rios e Márcia Lima, foi publicado pela editora Zahar . O livro “Lugar de Negro”, de Lélia e Carlos Hasenbalg, foi relançado em 2022 pela mesma editora. Em junho deste ano, a nova edição de “Festas Populares no Brasil” saiu pela Boitempo.

“Todo esse movimento fez com que as pessoas começassem a buscar o que ela falava há 40, 50 anos, e é contemporâneo, é atual. A fala da Angela Davis, as estátuas, os livros, tudo isso tem dado um ‘up’ muito grande aos 30 anos do falecimento dela”, diz Rubens Rufino, filho de Lélia.

Rufino destaca ainda o Projeto Memória Lélia Gonzalez, da Fundação Banco do Brasil, já em comemoração aos 90 anos que a filósofa completaria em fevereiro de 2025.

Criada em 1997, a iniciativa já retratou a vida e a obra de diversos autores. Lélia tinha sido a última da série, em 2014, e agora projeto volta com a temática Caminhos e Reflexões Antirracistas e Antissexistas.

Entre as atrações estão a exibição de um documentário, seminários e palestras com autoras, mostra educativa e um Almanaque Pedagógico sobre Lélia Gonzalez, uma ferramenta para professores e alunos de todos os níveis de ensino. O material está disponível no site do projeto.

O Memória estreou em Salvador e atualmente está em cartaz em Belo Horizonte, no Centro Cultural Banco do Brasil. Passará ainda por Brasília, São Luís, Belém, Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Em outra iniciativa, a família criou o perfil Lélia Gonzalez Vive no Instagram e está construindo o site Instituto Memorial Lélia Gonzalez.

Nesta quinta-feira (25), é comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data é usada para fortalecer organizações e ações voltadas às mulheres negras e suas lutas.

“Ser uma sociedade mais justa e igualitária passa pela luta antirracista e antissexista. Essa evidência a gente gostaria que também acontecesse com outras mulheres, como Beatriz Nascimento, Neusa Santos e muitas outras”, diz Rufino.

FRANCISCO LIMA NETO / Folhapress

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