James Baldwin, 100, foi precursor ao aliar as pautas queer e raciais na literatura

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O segundo romance de James Baldwin, “O Quarto de Giovanni”, foi recebido com surpresa pela sua editora, a americana Knopf, bem como as outras que ele teve que procurar depois do primeiro não. Em 1955, quando ele terminou o livro, aquela história europeia sobre um amor entre dois homens brancos, um americano e um italiano, passava longe do que era esperado do escritor.

Dois anos antes ele havia publicado “Go Tell It on the Mountain”, trabalho de uma década que retrata os dilemas de um jovem negro de 14 anos em conflito com seu futuro como pastor –uma primeira incursão literária cheia de referências à infância do autor que cresceu no Harlem dos anos 1930, em um cenário doméstico parecido com o do protagonista.

Depois, no mesmo ano em que começou a tentar emplacar seu segundo livro, Baldwin publicou “Notas de um Filho Nativo”, coletânea de ensaios sobre sua experiência como homem negro e gay nos Estados Unidos e na França. Incomodou que, subitamente, ele resolvesse escrever sobre brancos numa Europa que, apesar de habitada pelo próprio Baldwin, era sempre tão branca na mente americana.

Em seu terceiro romance, “Terra Estranha”, sobre um grupo de amigos do Harlem, o escritor enfim trama numa única rede todas as suas preocupações ao passar falar de sexualidade, relacionamentos inter-raciais, política, racismo e arte, num retrato dos Estados Unidos do começo dos anos 1970.

Pensar no lado queer da obra de James Baldwin é entender que, muitos anos antes de esta ser uma pauta comum, o escritor e ensaísta desenvolveu o que hoje é chamado de interseccionalidade –a forma como as diferentes características que formam a personalidade de uma pessoa se sobrepõem, tornando dicotomias como branco-negro, hétero-queer e homem-mulher insuficientes.

Para o professor Fernando Luis de Morais, da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná, o trabalho de Baldwin ajudou a moldar uma compreensão mais complexa e inclusiva das identidades sexuais e de gênero.

“Baldwin não apenas abordou a sexualidade com uma sinceridade que estava adiante de seu tempo, mas também forneceu uma narrativa rica sobre a experiência queer que dialogava com temas de marginalização e resistência”, diz.

Na visão do professor, a autenticidade do autor era “sem precedentes” e estabeleceu “base duradoura para a literatura queer contemporânea”.

William Spurlin, professor de literatura da Universidade de Brunel, na Inglaterra, que pesquisa e escreve há anos sobre o escritor, pensa parecido.

“Ele se recusa a limitar a identidade ou as políticas identitárias ao pertencimento a um único grupo. Suas obras examinam a identidade a partir de múltiplas perspectivas, pois, para ele, as diferenças são formadas em relação a outras diferenças, de modo que não se pode falar sobre raça, por exemplo, sem falar sobre gênero, sexualidade, classe, nacionalidade, religião et cetera.”

O professor afirma que essa defesa e seus posicionamentos explícitos sobre a pauta queer minaram sua tentativa de se colocar como uma liderança na luta pelos direitos civis. Baldwin foi criticado pelo movimento nacionalista negro por ter uma sexualidade que era vista como parte da doença e a decadência do homem branco.

O interesse por sua obra reaquece, no entanto, no final dos anos 1980, após sua morte.

Ao viajar para o Brasil, a obra de Baldwin também encontrou barreiras. A primeira edição de “O Quarto de Giovanni” publicada aqui, em 1967, pela Civilização Brasileira, trazia em sua orelha um texto de Paulo Francis que ignorava o homoerotismo do livro e se atinha a seus elementos estéticos.

O jornalista seria responsável por publicar, cinco anos depois, uma entrevista de três páginas no Pasquim onde menospreza os escritos do autor, bem como suas lutas por direitos civis.

Já o escritor João Silvério Trevisan, hoje com 80 anos, foi pego de outro jeito pela obra de Baldwin. Crítico ao desprezo da esquerda mais ortodoxa pelo que costumavam ser chamadas de lutas menores, o também escritor e ensaísta conheceu “Terra Estranha” no final dos anos 1960, por volta dos seus 25 anos, pouco depois de “sair do armário”, e se enxergou no retrato do exílio de quem é estrangeiro na própria pátria por não pertencer ao mundo heteronormativo.

“Existia essa ideia mágica de que o socialismo seria uma varinha mágica que mudaria tudo, inclusive a cabeça das pessoas. Nós achávamos isso uma balela, porque conhecíamos elementos da esquerda deveriam ser nossos parceiros e que não aceitavam homossexualidade. A obra de Baldwin contemplava uma briga que nós estávamos fazendo dentro da esquerda em relação a autonomia dessas lutas, que se complementam.”

DIOGO BACHEGA / Folhapress

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