SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dois dos três casos em que policiais militares foram denunciados pelo MPSP (Ministério Público de São Paulo) por suas condutas durante a Operação Escudo, na Baixada Santista, demonstram como a mudança nos protocolos de funcionamento das câmeras corporais da corporação podem piorar a geração de provas e influenciar investigações. A gravação ininterrupta das câmeras demonstrou-se central nas duas situações.
Em maio, o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) lançou um edital com alterações significativas em relação ao sistema atualmente em vigor, principalmente na forma como a gravação é feita.
Hoje os equipamentos gravam de forma ininterrupta, e um botão deve ser acionado para melhorar a qualidade da imagem e do áudio. Com a mudança, caberá ao próprio policial ligar a câmera para que a gravação tenha início. Uma central também poderá fazer o acionamento caso o próprio agente não ligue o equipamento.
Deflagrada após a morte de um soldado da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM), a Escudo completa um ano neste domingo (28).
Somando as três operações do gênero que ocorreram na Baixada Santista neste período, chega-se ao saldo oficial de 93 mortos pela polícia. Se considerados todos os casos em que a PM matou nas cidades da região, inclusive quando agentes estavam de folga, o total é de 110 mortes.
Questionada, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que as 12 mil novas câmeras corporais que estão sendo contratadas pela PM cumprem as diretrizes do Ministério da Justiça e estão de acordo com a legislação vigente.
“O acionamento das COPs [câmeras operacionais portáteis] continua sendo obrigatório e seguirá rígidas regras”, diz a secretaria. “Qualquer desvio desvio dessas normas resultará em penalidades para o policial, que seguirão todos os ritos de investigação.”
A primeira denúncia contra policiais por uma ação da Escudo, apresentada em dezembro do ano passado, é baseada quase totalmente nas imagens das câmeras policiais. As gravações desse caso não existiriam se as novas câmeras da gestão Tarcísio já tivessem sido implementadas.
Isso porque eles não acionaram manualmente as câmeras, e toda a gravação ocorreu no modo ininterrupto. A defesa dos policiais alegou que isso ocorreu “por descuido”.
Dois policiais –o sargento Eduardo de Freitas Araújo e o soldado Augusto Vinícius Santos de Oliveira, da Rota– tornaram-se réus pelo caso, que ocorreu no Morro do Macaco, em Guarujá. Araújo é acusado de ter atirado com um fuzil contra Rogério Andrade de Jesus, 49, sem que ele oferecesse perigo à equipe.
Segundo os promotores, os PMs colocaram uma arma e um colete à prova de balas na cena do crime, além de bloquear suas câmeras corporais.
As imagens mostram os policiais se aproximando da casa de Rogério, e ficando mais de um minuto em frente à porta antes que o tiro fosse disparado. A denúncia do MPSP diz que eles abriram a porta da casa “sem a ocorrência de qualquer fato prévio que fundamentasse suspeita de possível flagrante delito e sem tentar chamar pelo morador”, como tinham feito pouco antes numa casa vizinha.
No processo, o defensor policiais diz que não há qualquer prova nas gravações de que eles tenham plantado os itens ou que Rogério estivesse desarmado. O homem não aparece na gravação no momento em que é baleado.
Vídeo mostra alerta à central após a ocorrência
O segundo caso da Escudo denunciado por promotores mostra que as provas também podem ser prejudicadas quando o acionamento depende da central da corporação, o Copom (Centro de Operações da PM). Trata-se da morte de Jefferson Junio Ramos Diogo, 34, em 29 de julho do ano passado, na comunidade Prainha, em Guarujá, num caso que também envolveu policiais da Rota.
A equipe era formada por Rubem Pinto Santos, Rafael Perestrelo Trogillo e Samuel Wesley Cosmo –este último morreria em fevereiro do ano seguinte durante uma ação policial em Santos. As imagens mostram que eles estavam agachados atrás de uma cerca. Um deles diz ao colega ter visto um suspeito com uma arma na mão e tem início uma troca de tiros.
Segundo o relato no boletim de ocorrência, eles avistaram três suspeitos. Dois correram para um lado durante a troca de tiros, e Diogo foi alvejado após ir em outra direção. Ele foi ferido com quatro tiros.
Dois dos três PMs envolvidos não ligaram as câmeras durante o confronto, contrariando os protocolos da PM. Eles fazem isso apenas após o soldado Rubem ir até Diogo, que está caído no chão e possivelmente já morto. Logo após chegar próximo ao corpo, ele diz a um colega que o suspeito “está desarmado”.
Os promotores afirmam que uma arma foi colocada pelo soldado ao lado do corpo nesse momento. Não é possível perceber pelas imagens se Diogo estava armado antes dos tiros.
Um dos policiais aciona a central de operações cerca de um minuto e meio depois dessa cena. “Copom, Rota 341, QRX na rede, troca de tiro”, avisa Perestrelo pelo rádio.
Se dependesse apenas do acionamento intencional dos policiais, as câmeras só teriam registrado imagens a partir das 20h15, quando Cosmo e Trogillo ligam os equipamentos e a troca de tiros já havia terminado, os dois outros suspeitos já tinham fugido e Diogo já estava morto.
E, caso os agentes não tivessem ligado o equipamento, um acionamento remoto pelo Copom seria feito ainda mais tarde, após contatarem a central para relatar o episódio, e as câmeras não teriam capturado o momento em que Rubem se aproxima do corpo.
Minoria de casos com morte teve filmagem
Das 27 ocorrências em que pessoas foram mortas pela PM na Operação Escudo (houve um caso com duas mortes), apenas 7 tiveram imagens das câmeras corporais recebidas. Em 2 casos, houve dados recebidos parcialmente.
Os policiais não portavam câmeras em 14 ocorrências. Há casos em que os policiais, mobilizados em todo o estado para a operação, viajaram para o litoral sem os equipamentos para recarregar as baterias das câmeras. Essa foi a justificativa, por exemplo, para a falta de gravações no caso que resultou na morte de Cristian Rebelo dos Santos, morto, aos 38 anos, em 15 de agosto em Guarujá.
“Os policiais militares relacionados na ocorrência foram para a operação em 14 de agosto de 2023, às 6h, devendo permanecer até o dia 18 de agosto às 22h, estando os mesmos munidos de suas câmeras corporais, porém com autonomia média de 12h devido a carga da bateria”, diz um e-mail enviado pelo 1º Baep, de Campinas, após questionamentos em um inquérito sobre o caso.
“Devido a não terem a disponibilidade de carregamento através de docas específicas, não utilizavam as câmeras corporais no momento da ocorrência.”
O problema foi solucionado no dia seguinte à morte do suspeito. A investigação sobre a morte foi arquivada.
TULIO KRUSE / Folhapress