Com brasileira na disputa, eleição em agência da ONU define futuro da polêmica mineração em alto-mar

MADRI, ESPANHA (FOLHAPRESS) – Associada a diversos riscos ambientais, a mineração em alto-mar —atividade comercial que ainda não existe, mas já é avaliada em trilhões de dólares— pode ter seu futuro decidido com as eleições para a liderança de uma pequena e pouco conhecida agência afiliada às Nações Unidas.

A disputa, travada entre o atual secretário-geral da organização, amplamente apoiado pela indústria, e uma oceanógrafa e diplomata brasileira, a preferida dos ambientalistas, tem atraído atenção internacional inédita para a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês).

Além de todas as questões associadas à regulamentação da controversa atividade de mineração em alto-mar, as eleições, marcadas para a próxima sexta-feira (2), ocorrem ainda em meio a suspeitas, reveladas pelo The New York Times, de pagamentos para obtenção de votos, má gestão de recursos e conflitos de interesses na candidatura do atual chefe da organização.

No cargo desde 2016, o britânico Michael Lodge tenta um terceiro mandato à frente da entidade. Advogado com especialização em legislação marinha, ele vem incentivando países-membros a fecharem, no curto prazo, a definição das regras ambientais que permitiriam o início das atividades em alto-mar.

Classificado por ambientalistas como excessivamente próximo à indústria da mineração, Lodge já fez declarações favoráveis à exploração de recursos em alto-mar. O britânico chegou a aparecer em um vídeo promocional de uma mineradora, mas negou que houvesse conflito de interesses.

Ao contrário das duas outras vezes em que concorreu, Lodge agora não é apoiado pelo Reino Unido. Desta vez, sua candidatura é patrocinada por Kiribati, país-ilha do Pacífico abertamente interessado no começo das atividades de mineração.

Com uma proposta de mudanças, o Brasil apresentou candidatura alternativa ao posto de secretário-geral: a oceanógrafa Leticia Carvalho, atualmente diretora de oceanos e águas doces no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

Com quase duas décadas de experiência no Ministério do Meio Ambiente, onde trabalhou, entre outras coisas, com regulação de extração de petróleo no mar, ela concorre com proposta de transformação da ISA, incluindo maior transparência no processo de decisão e na relação com mineradoras.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Leticia Carvalho afirmou que a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos vive uma crise de governança, com repercussões na sua reputação.

“Há uma clara questão sobre transparência, uma opacidade na tomada de decisão, na alocação de recursos. Eu quero muito mais transparência, aproximando muito mais a ISA das boas práticas e regras da ONU”, afirmou.

A candidatura da brasileira acendeu o alerta no grupo do atual secretário-geral, que chegou a acenar com a possibilidade de um alto cargo na ISA em troca de sua saída da disputa. A proposta foi apresentada pelo embaixador de Kiribati à missão brasileira em Nova York, em reunião bilateral com a presença da concorrente.

“Eu considerei tal proposta inapropriada e infactível diante da legitimidade da candidatura apresentada pelo Brasil. Meu concorrente já cumpriu dois turnos e não é apoiado pelo seu próprio país, a Inglaterra”, disse Leticia.

“Quanto a mim, como brasileira, qualificada e comprovadamente experiente para o cargo, jamais abriria mão da liderança no mais alto nível da ISA, da oportunidade de ser a primeira mulher a ocupar a esta função”, afirmou. “Eu não estou procurando um emprego, eu me voluntariei pelas minhas comprovadas competências e trajetória profissional e pela absoluta confiança de que posso e farei um excelente trabalho.”

O leito marinho em águas internacionais é considerado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar como “patrimônio comum da humanidade”. A ISA foi criada em 1994 para garantir a “exploração equitativa” desses recursos, protegendo o ambiente marinho.

Por vários anos, a entidade operou atraindo pouca atenção. No entanto, o aumento da popularidade dos carros elétricos, cuja fabricação demanda uma série de recursos minerais que existem no leito marinho, como níquel, cobalto, manganês e cobre, renovou o interesse pela exploração do fundo dos oceanos.

Apelidada de “última fronteira” da mineração, a extração de recursos em alto-mar ainda não tem autorização. Enquanto a regulação não é definida, a ISA tem concedido as chamadas licenças exploratórias, que servem para pesquisar a viabilidade e os impactos das atividades.

Até agora, já foram dadas 31 licenças, totalizando cerca de 1,5 milhão de km2.

Os riscos ambientais associados, no entanto, são considerados elevados, sobretudo porque os oceanos, principalmente em águas profundas, são um território pouco desbravado pelos cientistas.

Os defensores da mineração em alto-mar argumentam que ela pode contribuir para garantir o abastecimento de matérias-primas essenciais, hoje muitas vezes exclusivas de um pequeno grupo de países. As atividades nas águas também evitariam desmatamento e a utilização de trabalho infantil.

Muitas vozes na comunidade científica, no entanto, chamam a atenção para a falta de dados que atestem a segurança ambiental, sob risco de consequências irreversíveis.

Alguns estudos mostram que, além dos danos à biodiversidade no leito marinho no entorno dos sítios explorados, rejeitos e sedimentos ligados às operações podem provocar prejuízos ecológicos mesmo em áreas distantes.

Os debates se intensificaram a partir de 2021, quando Nauru, outro país-ilha com interesse na prospecção, invocou uma cláusula da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que garante que os países possam acionar um chamado “gatilho de dois anos” caso avaliem que as negociações estejam excessivamente lentas. Ambientalistas temem que, diante do imbróglio legal, atividades comerciais comecem mesmo sem a devida autorização.

O tema foi um dos destaques na última Conferência dos Oceanos da ONU, realizada em Lisboa em 2022, quando vários países anunciaram o apoio a uma moratória da exploração dos recursos marinhos em águas internacionais. Em carta aberta, mais de 800 cientistas apoiam esse movimento.

Governos de quase 30 países também já se posicionaram favoravelmente a uma moratória ou outro tipo de paralisação. Em 2023, o Brasil se juntou a esse grupo, defendendo pausa preventiva de, no mínimo, dez anos.

Postulante à liderança da ISA, Leticia Carvalho afirma que a decisão sobre esse assunto é um desígnio dos 167 países-membros, mais a União Europeia, que governam a entidade.

“O papel do secretário-geral não é tomar essa decisão. Quem faz isso é o conselho, os Estados-membros. Isso precisa ficar muito claro, porque o secretário-geral precisa ser, por definição, neutro”, afirmou.

A candidata brasileira reconhece que o tema é sensível, mas defende que é preciso avançar na regulação.

Michael Lodge, atual líder da instituição, tem acusado críticos de interpretar mal o seu trabalho e sua interlocução junto às mineradoras. Ele afirma ainda que ambientalistas tendem a exagerar quanto aos potenciais impactos ao ambiente.

Uma reportagem do jornal The New York Times publicada no começo de julho compila alguns das alegações contra o atual secretário-geral, incluindo suspeitas sobre reembolsos de despesas e usos de recursos da organização, inclusive para viagens internacionais que poderiam ser interpretadas como despesas de campanha. Lodge nega todas as irregularidades.

GIULIANA MIRANDA / Folhapress

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