FOLHAPRESS – Já não existem milagres, diz Max, o velho montador de filmes, a alturas tantas de “Fechar os Olhos”, e completa: “desde que Dreyer morreu”. Ele refere-se a Carl Theodor Dreyer, que praticou o milagre de ressuscitar uma personagem de seu “A Palavra”. Sim, milagres não existem mais desde que Dreyer morreu.
Era apenas um milagre cinematográfico, pode-se alegar. Mas qual milagre não é? Cristo caminhando sobre as águas ou Moisés abrindo o mar Vermelho são imagens que arrastam nossa crença. Arrastam com mais força, muito mais, quando as vemos numa tela.
“Fechar os Olhos” já é, em si, um pequeno milagre. Até agora conhecíamos Victor Erice como um diretor que, de dez em anos, nos entregava um grande filme. Foi assim com “O Espírito da Colmeia” (1973), depois “O Sul” (1982), “O Sol de Marmelo” (1992). Mas fazia mais de 30 anos que a Espanha (e o mundo) esperava seu quarto longa-metragem seu. E Erice hoje já tem 84 anos.
No entanto, “Fechar os Olhos” aí está. Como uma espécie de milagre da imagem, num filme que fala de cinema todo o tempo. Primeiro, porque começa com uma linda cena, em que um velho senhor judeu convoca um antigo anarquista para reencontrar sua filha, que partiu para a China com a mãe anos atrás. O único desejo desse rico homem é reencontrar a filha antes de morrer. Vemos a cena e, assim que o ex-anarquista sai da mansão onde se passa a conversa, o filme se detém.
Sabemos então que este não é o filme que vamos ver. O filme que estava sendo feito foi interrompido, porque o ator (o ex-anarquista) desapareceu. Mikel Garay (Manolo Solo), o diretor do filme inacabado, é convidado a participar de um programa de TV chamados “Casos Sin Resolver”.
Garay é um estranho personagem. Deixou o filme (seria o segundo de sua carreira) inacabado, só com a primeira e a última sequências filmadas e nunca se conformou em retomá-lo com outro ator.
O ator desaparecido chamava-se Julio Arenas (José Coronado), mais conhecido como Gardel, seja porque era um galã (um mito na Espanha), sujeito sedutor e, ainda, hábil professor de tango. Desde então estamos em um filme de mistério. Terá sido Gardel assassinado por algum marido ciumento que sumiu com seu corpo? Ou, numa crise depressiva, teria se suicidado?
Garay parte em busca de notícias. É então que o conhecemos. Escreveu um romance, com o qual foi premiado, mas vive mais de fazer traduções. Reecontra a filha de Arenas, Ana, que não quer nem ouvir falar do pai.
Quem interpreta Ana é ninguém menos que Ana Torrent, a menina-prodígio que descobriu ao fazer “O Espírito da Colmeia”. Ao contrário de tantas garotas prodígio, diga-se, Torrent cresceu sensível e talentosa. O problema é que Ana não quer nem ouvir falar do pai, por motivos que saberemos vendo o filme.
As coisas vão um pouco melhor quando encontra uma antiga namorada, cujo amor dividia com Gardel. Mas é certo que o destino de Garay é estranho: um homem retirado, que vive num trailer, numa aldeia de pescadores, fazendo suas traduções, pescando, cantando ao violão a música de um velho faroeste, topando com um cartaz de “Amarga Esperança”, de Nicholas Ray.
Por que seria Garay tão obcecado pelo desaparecimento do amigo? Gardel era seu alter ego, sem dúvida. Mas não o único no filme. Max, o velho montador, também é. Ele guarda as latas de celuloide, coisa que ninguém mais usa. E nem monta mais. Onde já se viu, pensa, montar sem ver os fotogramas, como acontece na montagem digital de hoje?
Pensando bem, “Fechar os Olhos” é, em boa medida, o filme de um personagem só. Pois se o desaparecido Gardel é alter ego de Garay, e este não deixa de ser alter ego de Victor Erice, cineasta desaparecido como cineasta, entenda-se há mais de 30 anos.
Nesse meio tempo, morreu Elias Querejeta, o produtor de “O Espírito da Colmeia”. Antes, em 1980, morrera Luis Cuadrado, o fabuloso fotógrafo do filme, desgraçadamente vítima de cegueira progressiva. É um pouco gente como Max. Em outras palavras, “Fechar os Olhos” é um filme onde se procura Gardel. Mais do que isso, no entanto, é um filme onde Mikel Garay procura Victor Erice, esse fabuloso fantasma do cinema.
Não há de ser por acaso que uma das cenas-chave do filme, aquela em que se vai exibir a outra cena do filme que Garay estava fazendo, a cena final, vê-se a mesma praça e o mesmo cinema em que, 50 anos antes, se exibiu “Frankenstein”, numa cena capital de “Espírito da Colmeia”.
Pois tudo em “Fechar os Olhos” sugere um reencontro entre o presente e o passado. Reencontro, não necessariamente reconciliação. O passado, o cinema clássico, Elias Querejeta (o grande produtor), Luis Cuadrado (o soberbo fotógrafo tocado pela cegueira) são as ausências que ocupam a vida de Garay. São aquilo que acabou, que não voltará.
No entanto, permanece o mistério: voltará Julio Arenas/Gardel? Reencontrará a memória? Abrirá os olhos para o mundo que já não existe para ele, ou será para sempre um fantasma na cabeça dos outros? Um fantasma que pode até renascer, mas sem vida, como o monstro de “Frankenstein”. Não porque seja um monstro, mas porque entende que seu mundo já acabou.
Sim, “Fechar os Olhos” é uma obra-prima crepuscular, que confirma Erice como o maior cineasta espanhol de todos os tempos ao lado de Buñuel, o exilado, que raramente filmou na Espanha. Infelizmente, é quase certo que esta seja sua última obra-prima.
Pior: salvo engano, ainda nem tem distribuição no Brasil.
FECHAR OS OLHOS
– Avaliação Ótimo
– Quando Mostra Amor ao Cinema: Sex. (2), às 20h, no Cinesesc
– Classificação 14 anos
– Elenco José Coronado, Manolo Solo, Ana Torrent
– Produção Espanha, Argentina, 2023
– Direção Victor Erice
INÁCIO ARAUJO / Folhapress