SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A MPB é repleta de tributos a ídolos do passado, de releituras a biografias e séries. Mas Clara Nunes, a mulher que foi a grande vendedora de discos no Brasil nos anos 1970 e no início da década seguinte, não tenha recebido ainda homenagens do tipo.
“Eu acho que ela não deixou herdeiros, isso faz uma diferença enorme. Elis, por exemplo, deixou herdeiros que lutam pela obra dela”, diz a cantora Vanessa da Mata enquanto é transformada em Clara, com maquiagem em figurino, para o musical que estreia nesta sexta (2), “A Tal Guerreira”.
Vanessa da Mata atua num musical pela primeira vez. Cantar, certamente, tira de letra. E as cenas dramáticas? “É outra criação, é brincar com outro tipo de palavra. Na atuação tem a melodia da fala, que é a mesma melodia que o rapper usa. Precisei me colocar como uma mulher da época dela, da época da minha mãe.”
A direção é de Jorge Farjalla, num trabalho que teve um tímido início antes da pandemia e só tomou corpo em tempos recentes. Vanessa foi apresentada a ele pelo ator Luís Miranda, dirigido por Farjalla em “O Mistério de Irma Vap”.
A obra não conta a vida de Clara Nunes em ordem cronológica. A proposta é uma narrativa onírica, para que o espectador junte peças de um quebra-cabeças. “Começa a partir da morte dela”, diz Farjalla. “Ela morre e vai para esse lugar que eu chamo de Olimpo dos Bambas. É um galpão de escola de samba, meio terreiro, e ela vai para esse lugar para reviver tudo pelo que passou.”
Pensando no filme “De-Lovely”, sobre a vida do compositor Cole Porter, no qual há um personagem o ajuda a se lembrar de sua jornada, Farjalla colocou em cena Bibi Ferreira, que dirigiu shows de Clara nos anos 1970 e se tornou grande amiga. Ela é interpretada por Carol Costa. “A Bibi vai conduzir a Clara nesse universo onírico onde ela vai reencontrar amores e canções”, diz.
A cantora morreu em 1983, aos 40 anos, depois de uma reação alérgica à anestesia para uma cirurgia de varizes. Desde a década anterior, estava consagrada como a grande sambista do país, acrescentando ao gênero várias vertentes da música regional, que ela pesquisava avidamente. Tudo transformado em hits na boca do povo, como “Conto de Areia”, “Guerreira”, “Canto das Três Raças”, “O Mar Serenou” e “Morena de Angola”.
Apesar de muita gente já estar pedindo, Vanessa não pretende gravar as canções de Clara. “Ela tem muitos discos, acho que as pessoas devem procurar e conhecer a Clara original. O meu intuito aqui é uma gratidão eterna que eu tenho por ela.”
“Clara tinha aquele cabelão e eu me identificava, só depois eu soube que era permanente. Ela me ajudou muito na minha própria aceitação.” Vanessa fez aulas de dicção para incorporar a voz da cantora, que ia de agudos extremos para uma voz muito mais encorpada, “com o vibrato de uma outra época”, referindo-se a quando a voz oscila levemente.
“Vi tudo o que apareceu na minha frente para captar os olhares, a sobrancelha, o sorriso dela, que era bem gengival, os movimentos das mãos, que estão sempre no alto. Era muito anos 1950 ainda, coisas de Elizeth Cardoso, das divas da época.”
Clara Nunes começou a gravar boleros nos anos 1960 e passou ao samba. Agregadora de ritmos regionais ao gênero, experimentou também uma grande mudança fora da música, ao se aproximar das religiões afro-brasileiras. Logo, os cantos de terreiro foram misturados naturalmente à batida do samba.
“Para mim isso sempre foi muito interessante na Clara, além dos ritmos que ela trazia e de uma maneira simples, como música pop”, diz Vanessa. “Depois eu fui ver na Clara essa coisa do congado, caboclinho, baião. Era uma época em que compositores faziam músicas que eram um desafio.”
Aos seis anos, no interior de Minas Gerais, Clara já era órfã de pai e mãe, e foi criada pelos irmãos. Aos 15 anos, se mudou de Paraopeba para Belo Horizonte, porque um de seus irmãos matou um ex-namorado que a difamava, algo contemplado na narrativa fragmentada do musical.
“Tivemos dificuldade com alguns patrocinadores potenciais que queriam apagar a questão religiosa, tirar Ogum do musical. Ainda bem que a Petrobras aceitou”, diz Vanessa.
Sobre semelhanças com a personagem que interpreta, Vanessa acha graça ao recordar o Carnaval de 2012, quando a personificou no desfile da Portela, subindo ao carro com a Velha Guarda da escola. “Aqueles senhores falavam: Hoje alguém vai morrer aqui! Diziam que eu tinha a mesma energia dela, uma elegância misturada com simplicidade. Não sei como eles fizeram essa comparação comigo. Talvez seja essa falsa serenidade que eu tenho.”
CLARA NUNES: A TAL GUERREIRA
– Quando Sex., às 21h; sáb., às 17h e 21h; dom., às 16h e 20h. De sex. (2) até 29 de setembro
– Onde Teatro Bravos – r. Coropé, 88, São Paulo
– Preço De R$ 75 a R$ 300
– Elenco Vanessa da Mata, Carol Costa, André Torquato
– Direção Jorge Farjalla
THALES DE MENEZES / Folhapress