Ópera de compositora sueca soma-se a Bartók em espetáculo impecável

FOLHAPRESS – “Eu não tenho nenhuma articulação”. A frase, decomposta em sílabas e fonemas, repetida em fragmentos por Judith, a protagonista, ocupa praticamente toda a “Sequência de Sonho nº5”, ponto culminante da ópera “Eu, Vulcânica”, com música da sueca Malin Bång para texto da Mara Lee, encenada na última semana pelo Theatro Municipal em dobradinha com “O Castelo de Barba Azul”, de Béla Bartók.

Coprodução do Municipal de São Paulo com casas de teatro musical da Bélgica e da Suécia —onde estreou em 2023—, “Eu, Vulcânica” foi concebida como um complemento-resposta à obra do húngaro Bartók (sobre texto de seu compatriota Béla Balázs), ópera em um ato que, embora composta em 1911, estreou apenas sete anos depois.

Na obra de Bång e Lee a mesma Judith de “Barba Azul” peregrina estágios de queda e luto, porém sem perecer. Transforma-se ao passar por terra, ar, fogo e água, toca o fundo do abismo, mas —nas palavras da autora do libreto— sobrevive à violência, “recusando ser identificada apenas pela sua dor”.

A despeito de seguir uma estrutura homóloga a de Bartók-Balász, com um prólogo e sete partes —sete portas do castelo, na obra dos húngaros; sete sequências de sonhos na das suecas— trata-se de uma ópera que se distancia radicalmente da escrita vocal e harmônica tradicionais.

A música sai e circula ao redor do corpo-voz da atriz-cantora que personifica Judith, a soprano sueca Alexandra Büchel (em atuação brilhante), com apoio falado da atriz brasileira Gilda Nomacce. Fecham o elenco os cantores Laiana Oliveira e Flavio Mello e o ator Flávio Karpinscki, que personificam as “Escuridões” da protagonista.

Ao invés de tensão e relaxamento harmônico, temos fricção e movimento, as rugosidades da voz do canto à fala, do grito ao sussurro. As alturas descendem verticalmente até a voz se calar em balbucio. Há algo da prestidigitação do teatro de Stockhausen, mas um elemento percussivo perene, de evocação étnica, conecta Bång com o século 21.

Essa música precisa do corpo-voz de Judith para sobreviver e, apesar da leve emanação de didatismo nos textos falados (a despeito de seu simbolismo) e também na referência um tanto estereotipada aos velhos quatro elementos, há amarração entre os componentes dramáticos. Em meio a tudo o que já foi e tem sido, a ópera também pode ser assim: por que não?

Quem tenha se espantado ou irritado com “Eu, Vulcânica” —algumas poucas pessoas saíram no meio, apesar de o espetáculo ser curto e fluente— pode não saber que “O Castelo de Barba Azul”, hoje um clássico, provocou, em seu próprio tempo, uma reação adversa muito mais ruidosa.

O baixo-barítono argentino Hermán Iturralde, presente em São Paulo nos últimos anos em “O cavaleiro da rosa” e “O navio fantasma”, protagonizou Barba Azul com introspecção e beleza timbrística, e a mezzo-soprano paulistana Denise de Freitas —presente em alguns dos grandes momentos da vida lírica brasileira há pelo menos 20 anos— foi uma Judith densa, complexa, simultaneamente sedutora e doentia. Os dois personagens cantaram o texto original em húngaro, com interação e condução vocal-emocional admiráveis.

Uma deslumbrante escrita orquestral, natural e matemática, sensorial e especulativa, encontra seu ponto culminante na abertura da quinta porta, a que mostra o vasto reino do tétrico senhor do castelo.

A solução concebida pela direção cênica, a cargo do belga Walter Van Looy, de centralizar a ação em uma única porta, repetidamente aberta, cada vez com novos sentidos, foi eficiente e inspirada. E o equilíbrio entre as vozes e a Orquestra Sinfônica Municipal, dirigida por Roberto Minczuk, facilitado por um uso ponderado da amplificação, magnificou as sutilezas musicais.

George Steiner escreveu que a nossa cultura ocidental se encontra “no mesmo ponto que a Judith de Bartók quando pede para abrir a última porta”. Não haverá volta, não poderemos mais escolher os sonhos da ignorância. Essa derradeira porta, que se abre, bem pode ser a que leva à voz vulcânica, aos gritos e glissandos que seguem a queda de uma mulher na escuridão.

O OLHAR DE JUDITH

– Avaliação Ótimo

– Quando 26 e 30 de julho, às 20h; 27 e 28 de julho, às 18h

– Onde Theatro Municipal – Praça Ramos de Azevedo, São Paulo

– Preço De R$ 31 a R$ 200

– Classificação 12 anos

SIDNEY MOLINA / Folhapress

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