SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O veto do presidente Lula a mudanças no Enem com o novo ensino médio pode ter como efeito o enfraquecimento da parte flexível do currículo, os chamados itinerários formativos, segundo a avaliação de especialistas.
Na proposta do Legislativo, o estudante poderia optar por uma das áreas do conhecimento, independentemente do itinerário cursado no ensino médio, para ser avaliado no Enem. O texto dizia ainda que a alteração entraria em vigor a partir de 2027, o que também foi vetado.
Assim, a prova continuará ancorada à parte da formação geral comum a todos os estudantes, ou seja, das disciplinas curriculares tradicionais. Desde que a proposta foi aprovada pelo Senado, a gestão do ministro Camilo Santana já havia manifestado que não tinha intenção de fazer mudanças no formato do Enem.
Para especialistas, ao não prever mudanças na principal avaliação do país, o governo acaba na prática enfraquecendo a implementação dos itinerários formativos nas escolas, já que o conteúdo cobrado pelo Enem é o que é valorizado para ser ensinado aos alunos.
“Dessa maneira a parte flexível ficará em segundo plano e assim será pouco valorizada pelas escolas. Quem determina no Brasil o currículo é o sistema avaliativo, deveria ser o inverso mas aqui não. Ao vetar foi fortalecida exclusivamente a parte comum”, diz Mozart Neves Ramos, titular da cátedra Sérgio Henrique Ferreira da USP.
Para ele, manter o Enem da forma como está deixa o país em atraso, já que outros países e avaliações internacionais, como o Pisa, já colocam em prática a avaliação de outras habilidades além dos conteúdos tradicionais.
“É preciso ser capaz de avaliar competências e habilidades desenvolvidas pelos estudantes em consonância com a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] e porque não dizer com o cenário disruptivo que estamos vivendo”, diz.
Já Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP, diz que o veto foi uma decisão acertada do governo federal para garantir a igualdade de todos os estudantes na prova.
“A prova é nacional, portanto precisa ser pautada no que é comum. É uma questão de justiça, inclusive é uma questão constitucional: o direito à educação é nacional e é preciso ter igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Portanto, o ingresso à universidade precisa ser feito com a maior isonomia possível”, avalia.
Cara questiona, por exemplo, como seria feita a organização das questões da prova já que cada rede de ensino tem autonomia para definir seus itinerários. “Um Enem com a parte diversificada seria uma injustiça por definição: os itinerários de qual rede estadual prevaleceria?”, questiona.
A quantidade de horas a ser reservada para os itinerários formativos foi o principal motivo de disputa durante a discussão das mudanças para o novo ensino médio. Estudantes, professores e parte dos especialistas defendiam a revogação dessa parte flexível no currículo.
Outra parte dos especialistas e os secretários estaduais de educação (que são responsáveis por mais de 85% das matrículas nessa etapa de ensino) defende que os itinerários vão tornar a educação mais atrativa aos jovens, além de ajudá-los na preparação para o mercado de trabalho.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, na prática a nova organização da grade curricular do ensino médio deixou os alunos de São Paulo, por exemplo, sem aulas de história, geografia, biologia, química e física no último ano dessa etapa de ensino no ano passado. Eles também só tinham duas aulas por semana de matemática e duas de português.
Essas disciplinas deram espaço a novas matérias que foram criadas para os itinerários, assim os alunos passaram a ter aula com o nome de “brigadeiro gourmet” e “como se tornar um milionário”. Os adolescentes afirmavam que o novo conteúdo era desconectado com seus interesses, necessidades para a vida do trabalho e também para o que é cobrado no Enem.
Apesar da batalha em torno da carga horária, há pouca chance de o Legislativo derrubar o veto do presidente, já que a avaliação geral é de que as novas regras aprovadas agora mantém a estrutura geral definida na reforma de 2017.
ISABELA PALHARES / Folhapress