SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Na manhã da última sexta-feira em Salvador, Itamar Vieira Junior rememorava diante do público o dia inesquecível em que conheceu Jorge Amado e Zélia Gattai.
Então um jovem e tímido geógrafo, o autor que depois abalaria a literatura brasileira com “Torto Arado” se sentiu encorajado para contar ao casal que, além de fã, ele escrevia textos de próprio punho. Ouviu de volta do pai da literatura baiana “as melhores palavras de incentivo”.
“Jorge era o primeiro escritor vivo que eu encontrava na vida”, contou Vieira Junior na mesa afetuosa que dividiu com Paloma Jorge Amado, filha do autor de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, na Festa Literária Internacional do Pelourinho. “Senti que eles me batizaram.”
Parece que a proposta de toda a Flipelô, apelido carinhoso do evento que realizou de quarta a domingo sua oitava edição na Bahia, é estender esse batismo a todo o povo da cidade.
O encontro de Itamar e Paloma, conhecidos de longa data, foi em um espaço infantil criado em homenagem a Mabel Velloso –educadora que é irmã mais velha de Caetano e Maria Bethânia, outra das famílias onipresentes no imaginário dali– ampliado de forma robusta com apoio do Instituto CCR.
Foi o lugar escolhido por um dos romancistas mais premiados do momento para apresentar pela primeira vez sua estreia na literatura infantil, “Chupim”, uma história doce sobre um menino que tem pena de espantar os pássaros que comem a plantação de sua família.
A escolha adianta a carga de afeto que a Flipelô, organizada desde 2017 pela Fundação Casa de Jorge Amado, adquiriu entre os escritores da região. Mas sua ambição vai bem além disso –ainda que priorize a promoção do talento local, é uma festa de caráter nacional.
“É uma cobrança sempre, qual a novidade da Flipelô esse ano? É justamente continuar a diversidade que a Flipelô é”, diz a diretora do festival e da fundação, Angela Fraga. A advogada trabalha há mais de 20 anos na instituição que paira no Pelourinho desde que foi inaugurada por Amado no final da década de 1980.
A atual diretora pegou o bastão de sua mãe, Myriam Fraga, que idealizou a festa ao se encantar com a Flip original, realizada em Paraty desde 2003, mas morreu meses antes de o financiamento para a primeira edição ser aprovado.
Desde então, a Flipelô enche de cultura todo o centro histórico de Salvador por cinco dias, da manhã à noite, quase sempre servindo também como festa de aniversário para o escritor de “Gabriela, Cravo e Canela”, morto em 2001, que teria comemorado 112 anos no sábado, 10 de agosto.
O evento serve também para a manutenção das atividades da fundação ao longo do ano –em 2024, o orçamento captado foi de R$ 2,5 milhões.
“A gente procura trazer gente de fora, mas não tem amarras com editoras”, afirma Fraga, a diretora. “Não trazemos o escritor que a Companhia das Letras quer que traga, por exemplo, mas o que achamos interessante e que vai ter uma troca com alguém daqui.”
Pelo contrário, as editoras prestigiadas são as dali mesmo. Entre as dezenas de auditórios que abrigam a programação gratuita da Flipelô, há a Casa das Editoras Baianas, feita para projetar o trabalho de qualidade feito por casas daquele estado como Solisluna, Paralelo13S e Mondrongo –um espaço que, aliás, ocupa o interior de uma igreja colonial.
E aqui está outra singularidade. Enquanto tantos festivais pelo Brasil têm que rebolar para encontrar espaço para seus eventos, este consegue mobilizar uma estrutura ampla de equipamentos que já existem, de teatros e museus até faculdades e templos, cada um soando um acorde que resulta na festa do Pelourinho.
Ali, então, brilham autores baianos como Luciany Aparecida, que tem ganho tração nacional com o romance “Mata Doce”, e Jorge Augusto, professor e pesquisador que tem tido sua poesia mais disseminada; e o autor homenageado pode ser Raul Seixas, espalhando um rosto de maluco beleza em estandartes e capas de vinis pelas ruas.
Mas também há visitantes de outros estados, como a paulista Natalia Timerman, a pernambucana Cida Pedrosa e o cearense Ronaldo Correia de Brito, até gente de fora do país. Fraga lembra bem o bafafá que gerou a vinda do moçambicano Mia Couto, no ano passado.
Assim, a prole de afilhados de Jorge Amado pode se multiplicar.
WALTER PORTO / Folhapress