BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – O Nobel de Literatura colombiano Gabriel García Márquez costumava dizer que “na realidade, a gente apenas escreve um livro ao longo de toda a vida”.
Embora seja de sua autoria, a expressão talvez não se aplique de modo tão apropriado a Gabo, que deixou uma extensa obra literária e jornalística que reverbera até hoje.
Mas é possível entendê-la melhor quando se trata de “Cem Anos de Solidão”, que ele descreveu como “o maior romance da minha vida”. Gabo passou mais de 15 anos pensando na obra, desenhando em sua imaginação o local, as características dos personagens, os acontecimentos e, como se quisesse experimentar cada passagem, as inseriu em diversos outros de seus escritos.
É o que se pode observar no livro “A Caminho de Macondo”, cuja edição original é de 2020, lançado agora no Brasil pela Record. O livro traz todos os contos, novelas, artigos e crônicas de jornal nos quais, de algum modo, algum elemento de seu maior romance aparece, ainda que de forma secundária.
Macondo, como se sabe, é um povoado fictício no interior da Colômbia, onde se desenrola a saga da família Buendía. O pano de fundo é a violenta história do país, assim como sua formação cultural marcada pela mistura de seus habitantes (espanhóis, indígenas, africanos), com um tratamento literário.
O livro foi tratado de modo banal dentro do chamado “realismo mágico”. O próprio Gabo tratou de desconstruir essa expressão ao demonstrar em entrevistas e em sua autobiografia, “Viver para Contar”, que o universo de “Cem Anos de Solidão” era o de sua infância em Aracataca, na região do rio Magdalena, onde foi criado por seus avós. “Após os oito anos de idade, nada mais interessante aconteceu em minha vida”, dizia.
Com isso, se referia à convivência com o avô, que lhe contava histórias de guerras passadas (e o levou para conhecer o gelo) e a infinidade de parentes que passavam pela casa familiar, assim como os indígenas locais e suas superstições, que deixavam Gabo intrigadíssimo tornando-se ele também um homem cheio de superstições.
Não é clara a origem do nome “Macondo”, mas sabe-se que era assim que se chamava uma fazenda pela qual o trem que levava o jovem Gabo a Aracataca depois de ter se mudado a Bogotá para estudar para visitar sua família. Uma placa de uma plantação de bananas da qual pouco se sabia trazia seu nome: “Macondo”.
Depois disso, vários personagens ou passagens ligados a Macondo começaram a aparecer em escritos de Gabo, como se ele estivesse ensaiando, experimentado, o que depois seria sua obra-prima.
Um texto dessa época, por exemplo, é “A Casa dos Buendía”, publicado num dos jornais da costa caribenha onde Gabo passaria seus primeiros anos como jornalista. Descrevia essa propriedade como “fresca”, “sempre de portas abertas”, por causa do calor, “um gramofone no canto”, dormitórios para toda a família.
Era a casa dos Buendía, mas com muito da casa de infância de Gabo, que pode ser visitada até hoje em Aracataca.
Mais macondiano impossível é o conto divulgado em 1955, também num jornal de baixa circulação, com o título “Monólogo de Isabel Viendo Llover en Macondo”. São poucas páginas, mas dão conta das rápidas e contínuas tempestades “bíblicas” que acometiam a região de Aracataca, de que Gabo tanto gostava que dava atribuições místicas. Era quando os moradores, sem ter mais o que fazer, miravam o horizonte pensando em suas existências, planos e frustrações.
Conrado Zuluaga, editor da coletânea, diz que a Macondo de “Cem Anos de Solidão” foi o resultado de um longo processo em que Gabo misturou sua experiência com sua fértil criatividade. E que os livros anteriores como “A Revoada”, “Ninguém Escreve ao Coronel” e “O Veneno da Madrugada”, embora tenham sua importância como obras de modo singular, foram parte desse longo caminho.
“Gabo dizia que antes de escrever um livro, era necessário aprender a escrevê-lo, essas obras anteriores lhe ensinaram isso.”
Macondo poderia ser apenas um povoado recém-fundado ou já um verdadeiro império da produção de bananas. Em “Os Funerais da Mamãe Grande”, de 1962, descreve-se a agonia da matriarca, de fortuna tão grande quanto secreta, que era a “senhora de toda a Macondo”. Em outro texto, o nome aparece de modo quase banal, como um nome num quadro torto na frente de um prédio: “Hotel Macondo”.
O leitor mais desavisado pode olhar para a obra e dizer, “mas por que quero saber como surgiu a ideia de Remedios, a Bela, se eu sei que, ao final, ela subiu aos céus”? Justamente para averiguar o quanto os mitos e a cultura ancestral inundavam o universo de Gabo.
Ou por que ler contos como “A Filha do Coronel” e “O Regresso de Meme”, se todos terão seu lugar em “Cem Anos de Solidão”, ainda que adaptados à narrativa.? Porque aí surgem as marcas históricas que designam a razão pelas quais irão compor, depois, o livro. Estão nesses primeiros escritos os avanços da United Fruit Company, vil companhia bananeira que até hoje responde por abusos contra os direitos humanos cometidos em solo colombiano.
Nesse volume, tudo pode ser identificado de uma só vez, e não se trata de uma coletânea qualquer. É um convite a entender todos os textos como uma mesma rede, um mesmo projeto de chegar aos “Cem Anos de Solidão”. “O romance mais importante que eu jamais escreverei”, disse Gabo a um amigo que o via freneticamente castigando sua velha máquina de escrever.
Entre um livro e outro, há rascunhos ou “apontamentos para um romance”, que descrevem um cenário, um personagem, uma tragédia a porvir. São apontamentos tão relevantes que nos levam a pensar se a cena em que último da estirpe vai lendo o livro de sua família desfazendo-se no vento quer dizer aquilo mesmo que entendemos.
Foram 16 anos desde o primeiro rabisco até a obra completa. Ainda que cada conto, novela ou reportagem que escrevesse tivesse vida própria, para Gabo eram tijolinhos na construção de sua obra máxima.
A CAMINHO DE MACONDO: FICÇÕES 1950-1966
– Preço R$ 79,90 (476 págs.); R$ 49,90 (ebook)
– Autoria Gabriel García Márquez
– Editora Record
– Tradução Ivone Benedetti, Édson Braga, Danúbio Rodrigues, Joel Braga Silveira
SYLVIA COLOMBO / Folhapress