LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Um engenheiro de carreira acadêmica brilhante, atuante desde a juventude em organizações ligadas à Igreja Católica e envolvido em iniciativas de apoio à população mais pobre. Sem participação ativa no combate à ditadura, acabou primeiro-ministro de Portugal de 1995 a 2002 pelo Partido Socialista, a maior legenda de esquerda de seu país.
A improvável trajetória política de António Guterres, 75, hoje em seu segundo mandato como secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), é contada na biografia “O Mundo Não Tem de Ser Assim”.
A obra foi escrita pelos jornalistas portugueses Pedro Latoeiro e Filipe Domingues, que agora se dedicam à diplomacia. A dupla entrevistou mais de 120 pessoas, incluindo ex-chefes de Estado e autoridades de diferentes países, e fez uma extensa pesquisa documental.
O próprio Guterres concedeu quatro entrevistas aos autores, que totalizaram mais de 20 horas de conversas.
“Em 2016, quando começou-se a falar da candidatura ao cargo de secretário-geral da ONU, sentimos que havia muito pouca informação sobre António Guterres, mesmo entre embaixadores e representantes de organismos internacionais já com muita experiência. A informação era muito superficial”, diz Domingues.
Segundo Latoeiro, a ideia sempre foi de fazer “uma biografia sobre o percurso e o pensamento político” do português, abordando apenas o indispensável de sua vida pessoal.
Historicamente reservado, Guterres passou a ser ainda mais cuidadoso com aquilo que diz em entrevistas desde que assumiu a liderança das Nações Unidas. Para identificar a gênese de seu pensamento e opiniões políticas, os autores mergulharam em arquivos históricos, incluindo documentos e declarações feitas pelo biografado há várias décadas.
É assim que se recupera, por exemplo, o fato de que Guterres defende há pelo menos 30 anos uma grande reforma do Conselho de Segurança, o principal instrumento da ONU, com a inclusão do Brasil como membro permanente.
A ideia de que o Brasil ocupa papel de protagonismo internacional, de uma maneira geral, também não é novidade para o português.
Em um movimento até então inédito, Guterres escolheu o país como destino de sua primeira viagem oficial como premiê, em 1996, levando consigo uma caravana de quase 40 pessoas. A ação representou uma guinada na política externa portuguesa, que buscou ativamente se reaproximar da antiga colônia.
Naquela altura, os dois países viviam uma relação distante, marcada sobretudo pelas notícias de tratamento hostil a imigrantes e turistas brasileiros. O próprio Guterres conta que, antes de embarcar para o Brasil, chamou o chefe do órgão responsável pela imigração para uma conversa e ordenou uma mudança completa na postura oficial, abrindo o país aos cidadãos do Brasil.
O português foi recebido pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, também entrevistado para o livro. Em 1996, ano da visita, Portugal representava 0,23% do total de investimento direto estrangeiro no Brasil. O país ibérico se tornaria, ainda durante o governo de Guterres, o terceiro maior investidor no Brasil.
Com a chegada de Lula ao poder, Guterres, já fora do governo de Portugal, fez uma nova aproximação, dessa vez na liderança da Internacional Socialista, que chegou a realizar um congresso em São Paulo com a presença do petista.
O projeto de criação de um rendimento mínimo para família carentes, implementado em Portugal durante a gestão Guterres, foi uma das iniciativas que compuseram a idealização do Bolsa Família brasileiro.
Com mais de 600 páginas, a biografia faz um apanhado minucioso da trajetória do líder português, que começou a se destacar ainda na infância. A paixão pela física descoberta na escola motivou a escolha pela faculdade de engenharia.
Ainda na universidade, contudo, o gosto pela política falou mais alto, e Guterres concluiu o curso já decidido a enveredar pela vida pública. Ao contrário da maior parte das figuras de sua geração, ele iniciou esta trilha na Juventude Universitária Católica e, a partir daí, em outras organizações. Guterres participou pela primeira vez de uma grande campanha de auxílio social em novembro de 1967, apoiando a população mais vulnerável de Lisboa, que sofreu com uma inundação de grandes proporções.
Esse engajamento, muitos anos mais tarde, o levaria a ser Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados durante dez anos, de 2005 a 2015.
Outra marca de Guterres desde a juventude é a busca pela formação de consensos, inclusive com adversários políticos.
O livro narra como ele venceu desconfianças e chegou à liderança do Partido Socialista. Muitos dos militantes históricos tinham o pé atrás com figuras ligadas à Igreja Católica, dada a sua proximidade com a ditadura salazarista.
A questão religiosa foi marcante em seu mandato. Em 1998, Guterres se aliou ao então líder da oposição, o também católico Marcelo Rebelo de Sousa, hoje presidente, para tentar barrar a descriminalização do aborto em Portugal.
Embora o Parlamento luso tivesse acabado de aprovar uma lei que permitia a interrupção voluntária da gravidez, os dois políticos articularam a realização de um referendo sobre o assunto. Com uma taxa de abstenção de 68%, o “não” ao direito do aborto venceu nas urnas, recebendo 50,9% dos votos. Em 2007, contudo, um novo referendo legalizaria a interrupção da gravidez.
No livro, Guterres diz que hoje pensa diferente sobre esse tema e a homossexualidade. “Acho que as coisas são completamente diferentes, o mundo evoluiu, e essas coisas também.”
A habilidade de conseguir entendimentos improváveis também garantiu a Guterres o posto de secretário-geral da ONU, em um momento em que se dava como certo que a liderança da organização ficaria, pela primeira vez na história, nas mãos de uma mulher. À frente das Nações Unidas desde 2017, ele teve de lidar com o declínio democrático em várias partes do mundo, a pandemia de Covid-19, a invasão da Ucrânia pela Rússia e a Guerra Israel-Hamas.
Ainda que Guterres não tenha anunciado formalmente seu destino quando deixar o cargo, no fim de 2026, os autores da biografia consideram difícil que ele volte à política de seu país. “Guterres tem laços políticos, para não dizer afetivos, em qualquer canto do mundo”, diz Latoeiro.
O MUNDO NÃO TEM DE SER ASSIM
– Preço R$ 139,80 (608 págs.)
– Autoria Pedro Latoeiro e Filipe Domingues
– Editora Liser
GIULIANA MIRANDA / Folhapress