PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Simone Biles chocou o mundo esportivo nos Jogos de Tóquio, em 2021, ao desistir de várias finais da ginástica artística por questões de saúde mental. A craque maior da modalidade se afastou das competições por dois anos e voltou ao palco olímpico em 2024, com três medalhas de ouro e uma de prata. Em Paris, encontrou um cenário diferente.
Muitos atletas, medalhistas ou não, trataram abertamente a questão ao longo das competições na capital francesa. Se antes era um tabu para os esportistas de alto rendimento exibir fragilidades e insegurança, essa barreira parece ter sido quebrada por boa parte da comunidade olímpica a partir do gesto da ginasta norte-americana.
Quando um dos maiores nomes da história do desporto demonstra sua fraqueza e pede ajuda, fica mais fácil para os demais fazerem o mesmo. Assim, a edição mais recente das Olimpíadas teve uma porção de competidores que relataram o cuidado que tiveram com a cabeça, não apenas com o corpo, na busca pelo pódio.
Um deles, claro, foi a própria Simone Biles, 27, surpresa consigo mesma. “Três anos atrás, eu jamais imaginaria que colocaria meus pés em uma arena de ginástica de novo, por tudo o que aconteceu”, disse, referindo-se aos “twisties”, que ocorrem quando um ginasta perde a noção espacial no ar, algo muito perigoso.
Para retornar, ela contou com uma rede de apoio que incluiu a mãe, o marido e profissionais de saúde. Antes de cada competição, como na que lhe rendeu o ouro na disputa individual geral em Paris, conversou com sua terapeuta. “Falo religiosamente com ela todas as quintas. Agradeço muito. Estou mentalmente bem!”
Também estava bem a única atleta capaz de desafiá-la. A brasileira Rebeca Andrade, 25, foi outra a sair de Paris com quatro medalhas. Bronze na disputa por equipes e prata no campeonato individual geral e no salto, derrotou Biles no solo para chegar a seis pódios olímpicos na carreira e se tornar recordista entre atletas brasileiros. Então, fez um agradecimento à sua psicóloga Aline Wolff.
Wolff foi uma das quatro profissionais da área levadas à França pelo COB (Comitê Olímpico do Brasil), e outros seis foram cedidos por diferentes confederações. A base da delegação brasileira, montada na cidade de Saint-Ouen, nos arredores de Paris, tinha também um psiquiatra à disposição dos atletas.
De acordo com o gerente de alto rendimento do comitê, Sebastian Pereira, ainda há os que relutam em receber esse tipo de auxílio, mas a aceitação cresceu. “A gente trabalha bastante no dia a dia para que eles possam se acostumar com a ideia. Muitos eram resistentes em relação a essa preparação, à psicologia”, afirmou.
Decisiva para que Rebeca chegasse a seis medalhas olímpicas, a força mental também foi importante para Isaquias Queiroz, 30, buscar sua quinta. Prata na prova C1 1.000 m da canoagem de velocidade, ele se mostrou revigorado após um ano quase sabático em 2023, com poucas competições e um retiro em sua Bahia.
“Eu estava muito sobrecarregado, mentalmente, psicologicamente, muito estresse mental. Eu não conseguia raciocinar direito, explodia em casa por qualquer coisa, com o Sebastian. Falei: Não sei o que está acontecendo, estou descontando no meu filho, não tem nada a ver”, contou o canoísta, que resolveu a questão com ajuda psiquiátrica e remédios.
Há vários outros exemplos. Campeãs no vôlei de praia, Ana Patrícia, 26, e Duda, 26, também mencionaram o auxílio de uma psicóloga. As duas haviam sido muito criticadas pelos resultados obtidos nos Jogos Olímpicos de Tóquio, à época com parceiras diferentes, e se apoiaram na ajuda profissional no caminho ao ouro.
Já Ana Marcela Cunha não saiu criticada do Japão, onde esteve no topo do pódio na maratona aquática. Sua dificuldade foi manter a motivação após a glória maior e uma lesão mais séria no ombro. Há um ano, procurou uma psicóloga e relatou que não tinha mais vontade de praticar seu esporte.
“É importante a quebra do tabu, mostrar que o atleta é um ser humano também. Não somos máquinas, em que você bota óleo para funcionar e pronto. A gente precisa do auxílio de muita gente para permanecer no alto rendimento”, disse a nadadora. Segundo ela, o quarto lugar no rio Sena não teria sido possível sem essa ajuda: “Olharam para mim como ser humano”.
A baiana de 32 anos celebrou a recuperação que a deixou perto da medalha. Já a judoca Mayra Aguiar, 33, ficou longe de repetir seu desempenho nas três edições anteriores dos Jogos Olímpicos, nas quais levou o bronze. Em Paris, foi eliminada na primeira luta e relatou a luta de seu corpo com sua mente.
“Eu já passei do meu limite. Já tem um tempo que eu venho mentindo até para o meu corpo, mentindo que está tudo bem. Eu tenho oito cirurgias no corpo, a primeira com 16 ou 17 anos. Eu sinto essa cirurgia até hoje. E sinto a outra. E sinto a última. Aprendi a treinar assim, a lutar assim, mas nos últimos anos tem sido mais difícil”, afirmou, entre lágrimas.
A gaúcha, então, pediu desculpa por ter ficado reclusa antes da competição, sem conceder entrevistas. “O pessoal estava enlouquecido: Está tudo bem, Mayra?. Não, não estava, mas, para não ficar reafirmando isso, talvez para ser mais fácil, eu menti para mim mesmo. Talvez eu tenha me fechado mais por conta disso também.”
Introduzido justamente em Paris, há cem anos, nos Jogos de 1924, o lema olímpico ainda é “citius, altius, fortius”. Mas, está cada vez mais claro para os atletas, o corpo só é “mais rápido, mais alto mais forte” impulsionado pela mente.
MARCOS GUEDES / Folhapress