FOLHAPRESS – O processo demasiado humano por meio do qual alguns textos passaram a ser vistos como sagrados por diferentes civilizações é o tema de “A Arte Perdida das Escrituras”, provavelmente o mais enciclopédico dos livros da escritora britânica Karen Armstrong.
Considerando o histórico de obras abrangentes produzidas por ela no passado, trata-se de um feito e tanto, apesar de algumas estranhezas na estrutura de sua narrativa.
Entre as grandes virtudes do livro está seu foco comparativo, que transcende o modelo ocidental de “Sagradas Escrituras”, calcado quase totalmente na Bíblia.
Começando com as mitologias pré-bíblicas do Oriente Próximo e mergulhando também nas tradições escriturais da Índia e da China, a autora elucida os impulsos semelhantes que levaram sociedades tão diversas a desenvolver seus próprios cânones de textos, sem deixar de lado as particularidades de cada tradição.
Do lado dos elementos comuns, a arqueologia literária de Armstrong mostra que a ideia de textos sacros isolados e assépticos, lidos individualmente por cada fiel, não poderia estar mais distante da gênese das principais escrituras.
A força original delas era derivada quase sempre da recitação em contextos rituais -uma função muito mais próxima de uma espécie de teatro sagrado do que de uma Bíblia na cabeceira da cama.
Entre os alicerces compartilhados estão também a natureza relativamente aberta do cânone, com uma capacidade para absorver novos textos e visões divergentes durante um longo período, e a elasticidade interpretativa, considerando que raramente uma leitura literalista predominava.
Com sua visão essencialmente otimista sobre o impacto das grandes tradições religiosas, a autora cita ainda o “princípio da caridade” formulado por Santo Agostinho –“a escritura não ensina nada que não seja caridade”, dizia ele –como um impulso comum a quase todos os cânones.
Seja nos ensinamentos de Jesus nos Evangelhos, no confucionismo chinês ou nos sutras (coleções de aforismos) budistas, a preocupação com o bem do próximo sempre teria sido primordial.
Paradoxalmente, argumenta ela, a ascensão das interpretações “ao pé da letra” para os textos religiosos muitas vezes não é um sintoma de obscurantismo, mas do próprio avanço do racionalismo, como aconteceu com a Reforma Protestante.
Não é por acaso que ela colocou lado a lado os capítulos “Sola Scriptura” (em latim, “Apenas a Escritura”, um dos lemas do protestantismo, com a primazia dada ao texto da Bíblia) e “Sola Ratio” (“Apenas a Razão”), contando como a Revolução Científica impactou a leitura dos textos sagrados.
Armstrong, infelizmente, decidiu acrescentar um contrapeso questionável à sua erudição e capacidade de síntese de sempre: a tentativa de explicar a trajetória das grandes religiões usando um resumo popularesco da neurociência moderna.
Ocorre que a autora aplica a distinção simplista entre as funções dos hemisférios cerebrais –o direito, supostamente mais “artístico” e intuitivo, de um lado, e o esquerdo, mais “racional” e matemático, do outro –às diferentes interpretações dos textos sagrados.
Enquanto as sociedades tradicionais que produziram esses documentos seriam dominadas pelas funções do hemisfério cerebral direito –sendo, portanto, mais flexíveis e criativas na hora de interpretar ensinamentos sacros, a tentação do fundamentalismo e do literalismo surgiria em sociedades modernizantes, em que se sobressai o hemisfério esquerdo.
É claro que o funcionamento do cérebro, mesmo no nível dos indivíduos, é muito mais complicado do que esse modelo dualista, para não falar de como a neurociência humana se manifesta no nível das sociedades. Por sorte, as menções a hemisférios cerebrais vão rareando conforme o livro progride.
A ARTE PERDIDA DAS ESCRITURAS
Preço: R$ 159,90 (648 págs.); R$ 49,90 (ebook)
Autoria: Karen Armstrong
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Berilo Vargas
Avaliação: Bom
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress