SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Benefícios fiscais “ocultos” e impostos pouco transparentes estão por trás da guerra de números travada durante as discussões sobre a inclusão das carnes na cesta básica da reforma tributária.
Embora a questão tenha sido resolvida na Câmara, durante a votação da lista de alimentos com alíquota zero, o Senado ainda pode ressuscitar uma discussão que assombra toda a cadeia de produção e venda de proteínas animais.
Duas perguntas estiveram no ar entre a apresentação da proposta do governo para a lista da cesta básica, no final de abril, e sua votação pelos deputados, no começo de julho: qual a tributação atual das carnes bovinas e qual o impacto da sua desoneração sobre a carga dos demais bens e serviços?
O sistema atual não permite que se saiba qual a carga tributária exata de qualquer produto, mesmo daqueles que, pela lei, são isentos.
Em um primeiro momento, o governo pensou em desonerar apenas os cortes mais consumidos pela população de menor renda, mas experiências anteriores resultaram em fraudes.
A classificação padrão é a separação do boi entre quartos dianteiros e quartos traseiros. Em geral, as carnes nobres estão na parte de trás.
Uma brincadeira, com base em fatos reais, diz que, em alguns estados que tentaram fazer a separação, auditores fiscais constataram que os bois se tornaram bípedes. Só havia quartos dianteiros (carnes contempladas com tributação menor) chegando aos açougues.
O governo propôs então reduzir a alíquota dessas proteínas em 60%, o que resultaria em uma tributação estimada em cerca de 10% (8,5% para quem recebesse o cashback, que é a devolução de parte do imposto).
Na apresentação do projeto, o secretário Bernard Appy chegou a afirmar que a picanha estava desonerada, mesmo sem a isenção, estimando uma tributação atual acima de 12%.
Um estudo do Banco Mundial que serve de referência para as discussões da reforma aponta uma carga atual de 14,41% nas carnes, apenas dos tributos que mudam com a reforma.
Os números foram contestados pelo setor durante os debates no Congresso, com o argumento de que as carnes estão na cesta básica do governo federal, com isenção das contribuições sociais PIS e Cofins.
Já o governo apontava que o preço desse alimento contém resíduo tributário das despesas das empresas que estão na cadeia de produção, do produtor até o supermercado, passando pelos grandes frigoríficos. Resíduo de tributos federais e também do ISS municipal e do ICMS estadual.
Também não houve entendimento sobre o peso desse último imposto. A maioria dos estados tem alíquota nominal de ICMS para carnes de 7% nas vendas internas e 12% nas operações interestaduais. Esses números não consideram, no entanto, benefícios fiscais espalhados pelo país.
No momento mais tenso das discussões, diante da possibilidade de perder a disputa pela isenção, as grandes empresas do setor decidiram colocar na mesa a existência desses incentivos, que vão acabar após a implantação total da reforma em 2033.
Muitos benefícios estiveram ocultos até a década passada, quando foram considerados inconstitucionais pelo Judiciário. Em 2017, o Congresso permitiu a regularização por 15 anos, desde que fosse dada publicidade a eles.
Embora a legislação não permita a concessão de incentivos ocultos, é praticamente impossível mapear as desonerações espalhadas pelo país. Em alguns casos, direcionadas a uma planta específica de uma empresa.
O sistema atual, no entanto, é tão confuso que não está claro o efeito desses incentivos nos preços e na carga tributária das carnes.
Técnicos do governo argumentaram que alguns desses benefícios são créditos que só podem ser usados nas operações interestaduais. Como boa parte do consumo é interno, devido à grande quantidade de plantas pelo país, muitos não são aproveitados.
A tensão nos debates sobre os números fez com que, no dia da votação na Câmara, um auditor da Receita Federal fosse convocado para ir até a residência oficial do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para uma “sabatina” sobre o modelo utilizado para calcular a tributação das carnes, na presença do ministro Fernando Haddad (Fazenda) e de outros parlamentares e técnicos do governo.
A Receita estimou um impacto de 0,53 ponto percentual na alíquota sobre os demais produtos para bancar a desoneração das carnes. A metodologia do Banco Mundial mostra impacto de 0,56 ponto. O setor de alimentos falou em um efeito marginal.
A avaliação é que o técnico se saiu bem. Ainda assim, por questões políticas, os deputados decidiram desonerar as carnes, com o apoio do presidente Lula, em uma derrota para Lira e Haddad.
Caso a isenção seja mantida pelo Senado, o benefício para o consumidor dependerá da disposição das empresas de repassar a desoneração para os preços. A área técnica do governo defendia a devolução do imposto sobre as carnes (cashback) para o terço de menor renda da população, mas foi voto vencido.
EDUARDO CUCOLO / Folhapress