VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – A cineasta alemã Leni Riefenstahl tinha 101 anos quando morreu, em 2003, e até o leito de morte jurou de pé junto que nunca foi nazista. Algo suspeito, porque na década de 1930 ela foi a responsável pelos mais importantes filmes que propagandeavam a ideologia de Adolf Hitler. Mas a diretora afirmava ser apolítica e desconhecer as atrocidades do Terceiro Reich. Nos seus filmes, apenas o fazer artístico lhe interessaria.
Ninguém nunca conseguiu provar nada, mas agora o diretor alemão Andres Veiel surge com um documentário que se presta a jogar uma pá de cal em dúvidas acerca da pretensa “ignorância” da diretora diante dos horrores nazistas na Segunda Guerra.
Exibido no Festival de Veneza, fora de competição, “Riefenstahl” traz o resultado de suas pesquisas no até então intocado acervo da diretora, guardado em 700 caixas repletas de áudios, filmes caseiros, cartas, anotações pessoais e fotos.
Em sua investigação, concluiu que ela sabia, sim, dos campos de concentração. E mais ainda: teria contribuído, mesmo que indiretamente, para a execução de judeus ainda em 1939.
O evento pouco conhecido se deu quando ela foi a Konskie, na Polônia, fazer um registro do front germânico, em projeto que acabou abortado. Uma carta escrita por um oficial, encontrada no acervo, revela o que aconteceu. Em certa cena, um grupo de judeus aparecia nas imagens. A diretora se enfureceu, gritando algo como: “Livrem-se deles!”.
“Ela foi uma catalisadora do massacre, porque ela exigiu que eles ficassem de fora das filmagens”, diz Veiel à reportagem, sobre o evento que levou 22 judeus à morte a tiros logo em seguida. “Depois disso, houve ali uma reação em cadeia, com as pessoas já suficientemente tomadas por antissemitismo tendo sua raiva aumentada ainda mais. Então a culpa dela talvez seja mais do que apenas testemunhar um massacre.”
O filme também traz à tona novamente as acusações feitas a Riefenstahl, pouco antes de morrer e negada por ela, de que usou crianças de um campo de concentração de ciganos para serem figurantes em seu longa “Terra Baixa”, filmado nos anos 1940, mas lançado só em 1954. E comprova que a relação entre ela com a cúpula nazista, sobretudo Hitler e o ministro da propaganda, Joseph Goebbels, era mais corriqueira do que ela revelava em entrevistas.
“Ela dizia que política e arte eram áreas completamente diferentes. Claro que não são”, diz Veiel. “Era muito esperta. Antes das entrevistas, dizia que se falassem de política, interromperia a conversa. Mas o assunto sempre aparecia, e ela não parava. Às vezes, ficava irritada, mas falava sobre Hitler e Goebbels, sempre se desculpando, dizendo ter que cumprir os pedidos deles.” Até morrer, teve obsessão com a ideia de sanitizar seu passado.
O fato de o documentário ser lançado no Festival de Veneza tem um peso simbólico. Afinal, foi na cidade italiana que a cineasta viveu momentos de glória, inclusive a premiação de seu filme “Olímpia”, em 1938, quando o evento era supervisionado por Benito Mussolini.
Bem antes do reconhecimento como cineasta, Riefenstahl era dançarina. Era uma mulher linda, atlética e de traços expressivos. Após fazer sucesso atuando em filmes que exploravam sua perícia no montanhismo, resolveu ela mesma dirigir um: “A Luz Azul”, de 1932.
Hitler teria visto o filme e se entusiasmado com a beleza das imagens, chamando-a para registrar materiais propagandísticos fascistas. Em “O Triunfo da Vontade”, de 1935, ela filmou um congresso nazista em Nuremberg, reservando em seu longa muito espaço para discursos do Führer. Sua técnica apurada para mostrar a grandiosidade do evento, a disciplina e os ideais elevados dos milhares de alemães participantes tornaram o longa um marco um caso exemplar de como um discurso fílmico pode servir a uma ideologia.
Em “Olympia”, de 1938, exaltou os corpos humanos perfeitos, registrando os jogos olímpicos de Berlim de dois anos antes, com destaque para o sentimento nacionalista dos participantes e seu vigor físico.
“Celebrava os vitoriosos, os superiores. E isso é uma ideologia fascista: o desprezo dos ditos fracos, doentes, anormais tire-os de perto de você, e terá a raça pura”, pontua Veiel, que diz que a diretora sempre teve fascínio pela noção de heroísmo, o que se nota em seus escritos.
No rascunho de suas memórias, ela narra, por exemplo, quando, aos cinco anos, seu pai a arremessou na água gelada, sem ela saber nadar.
“Segundo ela, quase se afogou, mas foi positivo, porque a partir dali se tornou uma boa nadadora. Quer dizer, naquele momento, ela se sentiu frágil, perto da morte. Mas ela se identificou com o agressor, o pai, como faria com outros patriarcas, como Hitler, desprezando a fraqueza.”
Veiel diz que a força da extrema-direita no mundo hoje torna importante o que ele chama de “exumação” do caso Riefenstahl.
“Na última conversa que ela tem no filme, pelo telefone, é dito que vai demorar uma ou duas gerações para a Alemanha reencontrar seu papel em termos de moralidade, virtude e ordem. Não se está ali muito distante de Donald Trump e o que ele diz sobre imigrantes estragarem o sangue americano. Foi uma conversa sombriamente profética.”
BRUNO GHETTI / Folhapress