‘Queer’ reforça sensualidade de Luca Guadagnino em sua obra mais experimental

VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – No ano passado, o italiano Luca Guadagnino recebeu o honroso convite de ter seu então novo filme, “Rivais”, como o longa de abertura do Festival de Veneza. Mas como a greve dos atores e roteiristas de Hollywood impediria que as estrelas principais fossem ao Lido promover o filme, o cineasta precisou recusar a oferta, e a obra ficou de fora dos grandes festivais.

Desta vez, Veneza voltou a chamar Guadagnino, não para abrir o evento, mas para disputar o Leão de Ouro. E foi assim que “Queer”, estrelado por Daniel Craig, foi exibido na manhã desta terça, 3, chamando atenção pelo vigor estético da obra e por suas ousadias, que incluem ardentes cenas de sexo gay.

O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome do escritor beat William S.Burroughs, conhecido por “Almoço Nu”. Escrito nos anos 1950, mas editado só em 1985, fala sobre seu alter ego, William Lee, expatriado americano no México, onde passa a vida sem grandes objetivos, a não ser encher a cara e se drogar com heroína. Ao conhecer Eugene Allerton, muito mais novo que ele, Lee se apaixona e passa a acreditar que ainda tem uma razão para viver. Em uma viagem ao Equador, em que vai atrás de uma planta alucinógena, tentará se aproximar do jovem.

“Queer”, o romance, é uma obra estranha, bastante audaciosa se levamos em conta a época em que foi escrita, mas não é exatamente um bom livro. A descrição da Cidade do México dos anos 1950 choca pelo quanto a cena underground gay por ali era viva, muito mais do que poderíamos imaginar.

Mas os dois protagonistas são um bocado antipáticos: Lee é uma homossexual de meia-idade de senso de humor discutível, uma criatura afetada e obsessiva em sua paixão por Allerton, que por sua vez é um rapaz por demais preguiçoso, apático e de personalidade desbotada. Apesar de falar muito de sexo, o livro nunca é excitante.

Guadagnino, porém, é um grande sensualista, e ele consegue imprimir uma textura, uma cor especial à trama e aos personagens, em sua transposição do romance para o cinema. Ele amplia o que, no livro, é apenas um protopersonagem: na tela, Lee, vivido pelo ex-James Bond Daniel Craig, é de fato o homem desesperado por algo que dê sentido a sua existência. É a angústia homossexual encarnada – seus excessos alcoólicos e suas piadinhas e risadas espalhafatosas nos bares se tornam no filme sintomas de uma alma em desespero, trancada em um corpo sempre tratado por todos e por ele mesmo como algo ridículo, decadente, humilhante. Como não consegue se conectar com mais nada em termos intelectuais, acha que o prazer físico (sexual ou alucinógeno) é sua última esperança.

Seu filme é um grande drama barroco, que apesar de passado em pleno México dos anos 1950, tem na trilha sonora músicas do Nirvana e outras bandas mais modernas. Depois que Lee e Allerton chegam ao Equador e encontram uma pesquisadora dos efeitos da planta alucinógena, o longa sofre uma reviravolta estética e se torna um delírio quase que completo, com muitas cenas de inspiração lynchiana.

É o filme mais experimental de Guadagnino, e se ele não consegue amarrar a história com um final convincente, desta vez é menos pela falta de inspiração habitual do italiano ao selar seus filmes – a exceção honrosa é “Me Chame pelo Seu Nome”, de 2017, cujo desfecho traz o célebre choro risonho de Timothée Chalamet ao telefone – do que pelos caminhos improváveis que a narrativa havia tomado até ali. É um filme atrevido e compensador, o que mais desafios trouxe ao público do festival até o momento.

Fora da competição, Veneza exibiu o documentário “Le Cinéma de Jean Pierre Léaud”, sobre o ator mais representativo da Nouvelle Vague francesa. Atuou em diversos longas de Jean-Luc Godard, como “A Chinesa”, de 1967, e em todo o ciclo Antoine Doinel, grupo de cinco filmes em que vivia o alter ego de François Truffaut, cineasta que o descobriu ainda pré-adolescente.

Mas Léaud trabalhou com diversos outros cineastas importantes, como o italiano Pier Paolo Pasolini, o brasileiro Glauber Rocha, o finlandês Aki Kaurismäki e o espanhol Albert Serra. Sempre foi uma pessoa pouco acessível a jornalistas, e a falta de informações sobre sua vida pessoal sempre o tornaram uma figura ainda mais mítica.

O documentário, dirigido por Cyril Leuthy, tampouco se preocupa em explorar a intimidade de Léaud. Pretende discutir seu significado no cinema, enquanto um ator muito particular, que amalgamava em cena traços dele mesmo, do personagem e dos diretores com quem trabalhava. É um estudo sobre esse intérprete moderno, inovador, que foi Léaud, sendo também viagem saudosa pela obra desse francês que foi tão presente na formação cinéfila de qualquer pessoa que ama o cinema.

BRUNO GHETTI / Folhapress

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