SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Variantes de DNA que têm papel-chave na maneira como o organismo absorve medicamentos são muito diferentes em indígenas dos Andes e nos que vivem em regiões relativamente próximas da floresta amazônica, segundo um grupo internacional de pesquisadores que inclui geneticistas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
A distinção entre os grupos indígenas, que pode ser só a ponta do iceberg de uma série de outras diferenças relevantes em termos médicos, é um indicativo de como o conhecimento sobre o genoma humano ainda privilegia pessoas de origem europeia e deixa de lado a variabilidade que existe em outros grupos mundo afora, argumentam eles.
“Eu gosto de ilustrar isso com a seguinte situação: se três homens muito ricos um branco de origem europeia, um negro e um indígena procurarem tratamento no melhor hospital dos Estados Unidos ou de São Paulo, todos pagando um seguro-saúde muito caro, o primeiro vai ter uma vantagem”, explica Eduardo Tarazona-Santos, do Departamento de Genética da UFMG, um dos autores do artigo sobre o tema pulicado no mês passado no periódico científico Cell.
“É algo que acontece porque a ciência sabe muito mais sobre como acontece uma doença nele e como tratá-la do que nos indivíduos africanos ou indígenas.”
Também assinam o artigo pesquisadores do Peru e de instituições europeias e da América do Norte, entre outras. A equipe destaca que, embora uma das grandes promessas do estudo do genoma humano esteja ligada à chamada medicina de precisão (ou seja, estratégias de tratamento que levem em conta as características de cada paciente), isso ainda esbarra na falta de conhecimento sobre a variabilidade de populações fora dos países desenvolvidos.
Os exemplos analisados pelos pesquisadores para demonstrar isso envolvem a reação do organismo a dois medicamentos. São a rosuvastatina (do grupo das estatinas, amplamente usadas para redução do colesterol) e a warfarina (um anticoagulante, empregado contra trombose).
No caso do medicamento contra o colesterol alto, existem variantes de DNA que favorecem ou atrapalham seu funcionamento no organismo, e a presença da variante mais favorável ao tratamento é mais de duas vezes mais comum entre indígenas amazônicos do que nos habitantes nativos das regiões áridas dos Andes uma diferença maior do que a existente entre europeus e pessoas do leste da Ásia.
Algo muito parecido acontece no caso da warfarina, cuja dosagem correta é essencial para evitar sangramentos nos pacientes, por exemplo. Uma variante genômica que permite o uso de doses menores está presente numa frequência que varia entre 30% e 50% dos indígenas da parte árida dos Andes, mas ultrapassa os 80% nos grupos amazônicos imediatamente a leste deles. De novo, a magnitude da diferença é a mesma que separa europeus de asiáticos do Extremo Oriente.
Para Tarazona-Santos, é possível que muitos exemplos assim estejam esperando para ser elucidados. “Nós, seres humanos, não somos geneticamente muito diferentes uns dos outros. Mas, mesmo se um milésimo do nosso genoma for diferente de uma pessoa para outra, isso representa 1 milhão de variantes genéticas, e algumas delas serão relevantes para nossas vidas. Podem ser importantes para diferenciar, como nesse caso, indígenas que moram em ambientes muito diferentes, mesmo se viverem a distâncias de poucas centenas de quilômetros.”
“Temos de superar as visões simplistas segundo as quais os nativos americanos se concebem, por um lado, como um grupo homogêneo ou, por outro, como pequenas tribos muito diferentes umas das outras.”
Para ele, o conhecimento sobre possíveis variações desse tipo entre os grupos indígenas das diferentes regiões do Brasil deve avançar graças ao projeto Genomas-SUS, do Ministério da Saúde, do qual a equipe da UFMG participa. O objetivo é “soletrar” o conjunto do DNA de 60 mil brasileiros, entre os quais indígenas da região amazônica.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress