SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A morte de Patrícia, mulher do guitarrista Andreas Kisser, há dois anos, provocou reflexões no líder do Sepultura. “Me senti despreparado para lidar. Nesse país ninguém fala de morte, eutanásia, suicídio assistido, cuidado paliativo”, ele diz. “Penso o contrário. Falar da morte é admitir que ela é inevitável e vai acontecer para todo mundo.”
Kisser então amadureceu com os outros integrantes –Paulo Xisto Jr., baixista, Derrick Green, vocalista, e o então baterista Eloy Casagrande, hoje no Slipknot– a ideia de dar um fim à própria banda. O Sepultura vai encerrar sua trajetória de quatro décadas após uma turnê de despedida, que começou em março, vai passar pelo Lollapalooza, rodar no exterior e deve chegar ao fim em São Paulo, em 2026.
De sexta a domingo, a banda faz na capital paulista três shows da excursão já com a morte marcada. Mas, antes de morrer de vez, a maior banda de heavy metal da história do Brasil, com um impacto mundial no gênero, já morreu outras vezes.
“A saída dos [irmãos] Cavalera e de empresários, as mudanças de gravadora, tudo isso são mortes que a gente teve durante a carreira do Sepultura e que deram outras possibilidades de vida”, diz. “Outras portas se abriram e estamos aqui por causa disso.”
Banda nacional de maior sucesso no exterior, o Sepultura já tocou em quase 80 países e mais de 800 cidades fora do Brasil, somando cerca de 2.000 shows internacionais. Alguns, como os megafestivais europeus, americanos e brasileiros, caso do Rock in Rio, e passagens pela Indonésia, em 1992, ou Cuba, em 2008, para várias dezenas de milhares de pessoas. Outros, para uns gatos-pingados.
“Tocamos em Phoenix uma vez para umas 15 ou 20 pessoas”, diz o guitarrista. “Essa turnê americana foi excelente, mas nessa cidade deu isso. Não cancelamos, nem diminuímos o show –a entrega é a mesma.”
Todas essas situações, ele diz, moldaram a banda. Começou em Belo Horizonte nos anos 1980, quando o próprio heavy metal ainda engatinhava ao redor do mundo. Os irmãos Cavalera –Max, vocalista e guitarrista, e Iggor, baterista– formaram o Sepultura com Paulo Xisto e outro guitarrista, Jairo Guedez.
Kisser os conheceu em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, onde morava, e após uma viagem à capital mineira entrou na banda. O quarteto já tinha um disco gravado, “Morbid Visions”, de qualidade precária mas estética inovadora –exalava as vertentes death e black metal, de pegada mais sombria, novas ao redor do mundo.
Com o guitarrista, fizeram o disco “Schizophrenia”, de 1987, que pôs o Sepultura no mapa do heavy metal global. “Slayer era uma banda underground, Metallica não lotava estádios”, diz. “Eram nossas influências.”
Esses grupos americanos eram os principais expoentes do thrash metal, subgênero calcado nas guitarras sujas, vocais gritados em gutural e ritmos acelerados. Àquela altura, eles cantavam, mas não sabiam falar inglês.
“Schizophrenia” foi pirateado na Europa e, se não deu dinheiro, pelo menos popularizou o nome da banda brasileira ao ponto de eles assinarem com a Roadrunner, gravadora holandesa. Pelo selo, lançaram uma sequência de quatro álbuns influentes –“Beneath the Remains”, de 1989, “Arise”, de 1991, “Chaos A.D.”, de 1993, e “Roots”, de 1996.
Foi quando a banda começou a rodar o mundo e influenciou músicos prestigiados –incluindo Lars Ulrich, baterista do Metallica, Dave Lombardo, baterista do Slayer, e Dave Grohl, do Foo Fighters. A incursão por ritmos brasileiros de “Roots”, assim como a afinação mais grave nas guitarras, deu as bases para o nu metal, sonoridade que despontou no começo dos anos 2000, com Slipknot e Korn.
O Sepultura cantava denúncias contra guerras, ditadores, racistas, violência policial. Retratou em “Manifest” o massacre do Carandiru, de 1992. É uma postura que contrasta com alguns artista e fãs do heavy metal hoje, adeptos de ideias extremistas de supremacia branca e neofascismo.
Uma das pautas levantadas pela banda desde os anos 1990 é a dos direitos dos povos nativos. Para “Roots”, a obra-prima do Sepultura, o quarteto conviveu e gravou numa aldeia xavante no Mato Grosso.
Essa experiência, diz Kisser, mudou sua vida. “O tempo lá é outro, um minuto parece que dura nove horas. Tudo é diferente –a relação com a mata, o contato com os animais. A gente tem muito a aprender com eles. Tacamos fogo na mata por coisas mesquinhas, mas que têm impactos profundos.”
A banda já vinha desenvolvendo uma levada mais cadenciada, chamada de groove metal, e conseguiu incorporar os tambores que despontavam com Nação Zumbi e a Timbalada de Carlinhos Brown, influenciados também pelos batuques dos estádios de futebol.
“Roots”, afirma Kisser, resulta de experiências desde o começo dos anos 1990, quando o grupo começou a viajar o mundo e atentar àquilo que é original do Brasil. “Trouxemos a percussão ao palco, vimos que funcionava bem com música pesada, e que era uma coisa muito brasileira.”
Mais do que uma ideia espontânea, o disco marca o ápice de um processo estético. “O produtor [americano] Ross Robinson também teve importância. Passamos a significar as coisas –não era só um riff, tudo tinha um contexto mais profundo.”
Com as saídas de Max, em 1997, no auge da popularidade do grupo, e Iggor, em 2006, o Sepultura se manteve na estrada e gravando discos com mais ou menos sucesso. A separação do vocalista foi traumática e até hoje rende discussões entre fãs.
“Ninguém sabe o que realmente aconteceu”, diz o guitarrista. “Eu vou contar minha versão, ele vai contar a dele e não vai dar para saber exatamente como foi.”
A entrada do vocalista Derrick Green, um homem negro, diz Kisser, provocou reações racistas tanto da gravadora quanto de parte dos fãs. “Nunca foi explícito, mas nem precisa ser.”
Na década de 2000, a banda “começou do zero” com o novo vocalista. Após um período mais inclinado ao hardcore, o Sepultura deu uma guinada conceitual, com discos baseados nos livros “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess. Foi só em “Kairos”, de 2011, que retomaram uma abordagem mais direta.
A mudança de rumos veio após um puxão de orelha de Markus Staiger, dono da gravadora Nuclear Blast. “Ele dizia: ‘Vocês são uma banda de metal, não são Pink Floyd. É caveira, é heavy metal, trash, porrada'”, afirma o guitarrista.
Aquele álbum e os três seguintes –“The Mediator…”, de 2013, “Machine Messiah”, de 2017, e “Quadra”, de 2020– marcaram uma retomada no prestígio do grupo tanto com a crítica quanto com os fãs. Contou também a entrada do agora ex-baterista da banda, Eloy Casagrande, prodígio no instrumento que só saiu do Sepultura neste ano porque foi para o Slipknot.
Hoje, o Sepultura celebra a vida na morte –frase que, em inglês, dá nome à última turnê, “Celebrating Life Through Death”. Ao medir o passado, Kisser se orgulha menos dos discos influentes e dos shows para multidões do que da capacidade da banda de sobressair na precariedade.
“Nosso legado é a disciplina de tocar, querer melhorar e mostrar que tudo é possível, principalmente o impossível”, diz. “Tivemos as dificuldades e as vantagens de ser brasileiros e ter nascido na época em que nascemos. Só aqui no terceiro mundo a gente tinha a nossa batucada. É como o Bob Marley, um cara que veio desse lugar. Assim como ele, deixamos uma lição.”
Desta vez, é a lição derradeira da banda que carrega a morte no nome. “Só quando você fecha o ciclo é que você pensa na moral da história. Qual o sentido de um livro ou um filme sem fim?”, diz o guitarrista. “A morte é uma excelente professora, dá uma intensidade maior ao presente. Nada é para sempre.”
Sepultura: Celebrating Life Through Death em São Paulo
Quando: Sex. (6), sáb. (7) e dom. (8), às 20h
Onde: Espaço Unimed – r. Tagipuru, 795, Barra Funda, São Paulo
Preço: Ingressos entre R$ 90 e R$ 350
LUCAS BRÊDA / Folhapress