SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Por volta das 10h de um dia útil de agosto, o fluxo de uma fila de carros na avenida Nove de Julho, no centro de São Paulo, é interrompido por um furgão branco que estaciona na faixa direita, em local proibido.
Parar em via de trânsito rápido é infração gravíssima que prevê multa de R$ 293,47 e 7 pontos na carteira. Um entregador sai do veículo e dá um pacote ao porteiro de um prédio. Cenas como esta se tornaram comuns na cidade.
Um estudo da empresa de logística Pathfind apontou um aumento de 20% no transporte urbano de carga durante a pandemia. A quantidade de motoqueiros também saltou de 220 mil para mais de 400 mil no período, segundo estimativa do SindimotoSP.
Estacionar na região central de São Paulo é difícil. Em um intervalo de uma hora, a reportagem flagrou outras três infrações de descarga em local proibido, inclusive com veículo subindo na calçada.
“Quer que eu pare onde, irmão?”, perguntou um motoqueiro com a mochila do iFood ao repórter, ao estacionar na vaga destinada a pessoas com deficiência em uma farmácia na alameda Santos, paralela à avenida Paulista, perto do meio-dia. Ele recolheu o pedido de um restaurante no lado oposto da rua. “Quer que eu pare certo ou quer comer?”, questionou.
Tanto a Nove de Julho como a Santos sofrem com a escassez de vagas de estacionamento, e a solução é parar em vias paralelas, cheias e distantes do ponto de entrega. No entorno do edifício Copan, na República, a situação não muda. “Se parar longe te roubam, se parar perto te multam”, afirma Sérgio Pires, parado com seu caminhão num recuo para ponto de ônibus. “Só tem vaga para taxista”, diz ele, que acumula 71 pontos na carteira.
As três regiões citadas foram apontadas por motoristas de um centro de distribuição do Mercado Livre na Mooca (zona leste) como as piores para se fazer uma entrega. Um entregador, que não quis se identificar, contou que estava num turno de 12 horas, iniciado às 6h, para ganhar R$ 210. Uma multa por estacionar na calçada (R$ 195,23, infração grave), por exemplo, o faria perder o dia de trabalho.
Ele avalia que o valor é bom, mas diz ser aconselhado pela empresa a usar parte da quantia para contratar outra pessoa que o auxilie na entrega -evitando, assim, estacionar em local proibido. Com dívidas para quitar, ele sai do furgão amarelo do Mercado Livre e entra em seu carro pessoal para o turno como motorista de aplicativo, até a meia-noite.
Para o especialista em mobilidade Miguel Ângelo Pricinote, a busca por vagas em vias paralelas não é ruim apenas para o entregador, mas para todo o trânsito. “Um motorista que não consegue parar é mais um veículo que fica dando voltas pelas ruas, criando engarrafamentos. E vamos lembrar que cada pacote que ele carrega é um deslocamento a menos do consumidor”, diz.
Pricinote também defende que as motos tenham categoria própria na Zona Azul, como ocorre com as vagas para idosos e veículos de carga, por exemplo. Em São Paulo, as motocicletas são isentas do pagamento de Zona Azul aos sábados, domingos e feriados desde que não haja restrição específica sinalizada em placa.
A CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) afirma que atualmente opera 55.566 vagas de Zona Azul, sendo 48.983 convencionais, 2.517 destinadas a caminhão, 1.177 para pessoas com deficiência com comprometimento de mobilidade, 2.820 para idosos e 69 para Zona Azul Fretamento.
Apesar de o centro abrigar 8.872 pontos comerciais, existem apenas 133 vagas específicas para carga e descarga na região, segundo pesquisa de 2023 do IPTC (Instituto Paulista de Transporte e Carga). São vagas específicas para caminhões, caminhonetes e veículos mistos. Para trabalhar, os entregadores ouvidos pelo estudo andavam, em média, 350 metros.
A pesquisa do IPTC também apontou falhas na fiscalização. “As vagas disponíveis de carga e descarga estavam sendo ocupadas por veículos não permitidos. Até a demarcação estava precária”, afirma Raquel Serini, economista que conduziu o estudo. O número de agentes da CET caiu 20% nos últimos dez anos, conforme números obtidos pela Folha via LAI (Lei de Acesso à Informação).
Serini avalia que uma alternativa capaz de minimizar o problema seria a implementação da entrega noturna. “Mas não vejo como algo corriqueiro, requer mão de obra para receber e enviar, o que não temos. Mas, em menor escala, entregas agendadas já podem fazer uso desse horário.”
Para a arquiteta Amanda Rosin, que estuda no mestrado as práticas dos entregadores, uma maior regulamentação de dark kitchens e dark stores também seria bem-vinda. “As infrações e acidentes nas entregas são causados pela pressão imposta pelas empresas que entregam e enviam, para reduzir o tempo.”
Quanto aos condomínios, que são os destinatários das mercadorias, é necessário adaptação à nova realidade, afirma Rodrigo Karpat, especialista em direito condominial. “Os prédios mais novos já estão trazendo praticidade à entrega. Porém, 70% dos condomínios em São Paulo foram construídos antes de 2000”, diz. Os mais antigos, se tiverem espaço, podem fazer uma área de descarga.
A Prefeitura de São Paulo afirmou, em nota, que “as vagas de carga e descarga para caminhões são organizadas na cidade para atender um perímetro de concentração de serviços e comércio e não individualmente cada estabelecimento”.
“Importante destacar que a tendência para o futuro é a entrega de mercadorias cada vez mais por modais menores, por meio da descentralização das centrais de distribuição”, acrescentou a gestão Ricardo Nunes (MDB).
Também procuradas, as empresas iFood, Magalu, Mercado Livre e Rappi afirmaram orientar os entregadores a não cometer infrações. Todos disseram oferecer cursos de capacitação aos seus motoristas.
A Magalu disse exigir a participação em treinamentos presenciais e online.
O iFood afirmou ter emitido mais de 100 mil certificados no iFood Decola, uma plataforma de aprendizado criada pela empresa. Também disse traçar suas rotas com inteligência artificial do aplicativo, que considera informações como distância e velocidade média das vias “para que o tempo de entrega previsto seja suficiente para que o entregador possa concluí-la, sempre respeitando a velocidade do viário urbano”.
A Rappi afirmou que “o entregador independente não sofre nenhum prejuízo ou punição caso a entrega não ocorra dentro do tempo estimado”.
Já o Mercado Livre disse que “investe e compartilha tecnologias avançadas para aprimorar a segurança e o bem-estar dos prestadores de serviços parceiros e de seus entregadores”, mas não especificou quais seriam essas tecnologias.
DIEGO ALEJANDRO / Folhapress