PACARAIMA, RR (FOLHAPRESS) – Suellem Silva, 35, aprendeu com seus alunos que “hambre” é fome em espanhol. “Estoy con hambre, maestra”, diziam eles ao chegarem à escola nas primeiras horas da manhã.
Eram meninos e meninas venezuelanos do 2º e do 3º ano do ensino fundamental da Escola Municipal Professor Ângelo Antônio Fernandes Biase, na pequena Pacaraima, em Roraima, que faz fronteira com a Venezuela. A migração mudou a dinâmica dessa escola pública.
Dos 391 estudantes ali matriculados, 60,3% são venezuelanos, e 34%, brasileiros; os demais são indígenas de ambas as nacionalidades. Do outro lado da grade que protege a escola estão um abrigo de imigrantes e refugiados e o posto da fronteira com a venezuelana Santa Elena de Uairén, por meio do qual diariamente chegam imigrantes ao menos desde 2017, quando a crise de abastecimento tomou conta da Venezuela.
Esse fluxo volta agora a crescer em meio à repressão e à desesperança que toma conta de muitos após a contestada reeleição de Nicolás Maduro no último 28 de julho.
A migração mudou a dinâmica de Pacaraima. Nas ruas é raro ouvir o português. Muitos comércios são de venezuelanos, desde a padaria que serve o doce café adoçado com baunilha de uma venezuelana da região do Orinoco aos self-services com comida servida desde as 9h.
O município é de longe o que mais cresceu em Roraima, consequência direta da migração. De 12,3 mil habitantes em 2017 chegou a 22,1 mil neste ano um aumento de 78%. As escolas, como a Ângelo Antônio Fernandes Biase, foram uma das primeiras a sentir esse efeito.
Suellem já havia tido alunos venezuelanos na capital do estado, Boa Vista. Mas nunca havia se deparado com uma realidade como a de Pacaraima, onde chegou para ser vice-diretora da unidade. “Na minha primeira turma, de 30 alunos, só dois eram brasileiros.”
O desafio começa obviamente no idioma. São meninos e meninas que acabaram de chegar falando apenas o espanhol, e alguns nem sequer frequentavam a escola na Venezuela. As professoras buscam cursos de espanhol e contam com a ajuda dos alunos venezuelanos que já estão há mais tempo ali para traduzir as palavras mais difíceis.
Não é uma rotina fácil. Suellem conta que muitos estudantes chegavam com fome à escola. Boa parte é enviada pela família especialmente para ter acesso a refeições. A escola tem aulas das 7h às 11h45 e das 13h30 às 17h45. São servidos café da manhã, almoço e jantar.
Por vezes os alunos ficam ali por pouco tempo, pois deixam Roraima com suas famílias por meio da interiorização, programa que envia venezuelanos a outros estados para vagas de emprego ou moradia. “Mas o importante é que estudem”, diz Stefhani Figueiredo, 28, a secretária da escola.
Venezuelana de Puerto Ordaz, no norte do país vizinho, ela chegou ao Brasil há cinco anos, no ápice da crise socioeconômica na Venezuela. Demorou a encontrar emprego. “Naquela época diziam nos comércios: ‘não, aqui não queremos venezuelanos’. E eu só queria trabalhar.”
Stefhani observa que muitos pais matriculam os filhos para receber benefícios como o Bolsa Família, atrelados à exigência de que a criança esteja na escola. “Seja qual for a situação, sempre vamos ajudar para que continuem seus estudos.”
Enquanto algumas turmas ensaiavam no pátio a apresentação para o feriado do 7 de Setembro no último dia 3, quando a reportagem esteve no local, do lado de fora professoras aguardavam a chegada de cerca de seis vans que vinham de Santa Elena de Uairén. Muitos alunos moram do lado venezuelano. É a vida transfronteiriça de Pacaraima.
Enquanto isso, as professoras celebram cada passo. “O aprendizado, depois de tanto tempo que eles estavam fora da sala de aula pela pandemia e pela migração, foi satisfatório. Quando os recebi, nenhum deles sabia o alfabeto ou o que eram as sílabas. Mas gostavam muito de matemática, era o forte deles. Ao final do ano, a maioria saiu somando, multiplicando. Alguns saíram sabendo ler, e a maioria juntando as sílabas.”
MAYARA PAIXÃO / Folhapress