SÃO CARLOS, SP, (FOLHAPRESS) – A população nativa da ilha de Páscoa, no meio do oceano Pacífico, não enfrentou nenhum tipo de colapso antes do século 19, quando começou a ter contatos mais constantes com os europeus, e pode até ter enviado navegantes para a costa da América do Sul vários séculos atrás, a julgar pela presença de material genético indígena em seu DNA, indica um novo estudo.
Os dados, que estão saindo na revista científica Nature, podem ser o último prego no caixão da tese de que a ilha teria sido palco de uma catástrofe ecológica e demográfica produzida pelos próprios nativos. De acordo com essa ideia, o território de Rapa Nui (nome empregado por seus habitantes originais) teria chegado a abrigar até 15 mil habitantes –segundo o censo mais recente, a população atual é um pouco inferior a 8.000 indivíduos.
Todo esse crescimento populacional pré-histórico, numa ilha com apenas 25 km de comprimento, teria vindo com um preço muito alto. Para intensificar a atividade agrícola e a criação de galinhas no território insular, os nativos de origem polinésia teriam derrubado a totalidade das matas de palmeiras típicas da ilha. Cada vez mais numerosos, os moradores desenvolveram a construção de plataformas e grandes estátuas de pedra, os “moai”, que até hoje atraem os turistas.
O solo, porém, foi empobrecendo, e a derrubada da floresta deixou os moradores sem o acesso à madeira necessária para construir barcos capazes de atravessar o Pacífico. Suposto resultado: uma feroz disputa por recursos, com guerras e canibalismo, reduzindo drasticamente a população original ao longo do século 17. Quando os primeiros navegantes europeus desembarcaram na ilha, no domingo de Páscoa de 1722 (daí o nome ocidental da região), o povo que os recebeu não passaria de um pálido resquício de seus antepassados.
O cenário descrito nos últimos parágrafos foi popularizado em best-sellers como “Colapso”, publicado em 2005 pelo biogeógrafo americano Jared Diamond. A ilha de Páscoa virou um símbolo do desastre que o “ecocídio” de um ambiente seria capaz de causar. Diversos estudos recentes, entretanto, indicam que nenhum tipo de catástrofe parece ter afetado realmente a população da ilha antes da chegada dos europeus.
Na publicação desta semana na revista Nature, a equipe liderada por Víctor Moreno-Mayar, da Universidade de Copenhague, decidiu investigar essa questão tomando como base o próprio genoma, ou conjunto do DNA, de pessoas que viveram na ilha séculos atrás.
Os esqueletos desses antigos habitantes de Rapa Nui acabaram sendo levados para um museu parisiense entre o final do século 19 e o começo do século 20, mas datações feitas com a técnica do carbono-14, a mais usada em trabalhos arqueológicos, indicam que ao menos alguns deles podem ser bem mais antigos do que isso. É a primeira vez que o genoma completo de antigos habitantes do território é analisado com alto grau de qualidade.
Acontece que os geneticistas já contam com um considerável arsenal estatístico que permite estimar como era a população à qual determinadas pessoas pertenciam no passado. Um desses mecanismos tem a ver com os padrões de distribuição de blocos de “letras” químicas de DNA no genoma dessas pessoas.
Sabe-se há muito tempo que todo ser humano carrega duas versões de cada trecho do DNA, uma herdada do pai e outra da mãe. Na hora de gerar filhos, entretanto, o novo pai ou a nova mãe só pode passar ao futuro bebê uma de suas próprias cópias, e não ambas. Isso significa que, em média, os filhos carregam 50% das cópias de cada trecho do DNA de cada pai; os netos, 25% das versões de DNA de cada avô; e assim por diante, sempre com divisões pela metade a cada geração.
É possível usar esse princípio para ter uma ideia da frequência de casamentos entre parentes próximos numa população ao longo do tempo, o que também ajuda a estimar o tamanho da população. Em geral, se vários indivíduos de uma população carregarem grandes blocos de DNA semelhantes entre si, isso significa que essas uniões consanguíneas, como se diz, foram muito comuns no passado. Isso porque a divisão do DNA herdado pela metade, que acontece de geração em geração, está sendo contrabalançada pela união entre parentes, que volta a “juntar as peças”, digamos.
Foi essa lógica que Moreno-Mayar e seus colegas usaram para estimar que, embora a população da ilha provavelmente tenha sido fundada por um número pequeno de habitantes originais, tal como aconteceu em outras ilhas descobertas por navegantes polinésios, ela passou a crescer de forma constante ao longo dos séculos, sem sinal de uma perda abrupta de membros.
Além disso, os genomas incluem uma contribuição de cerca de 10% de material genético indígena da América do Sul e, mais especificamente, da região central dos atuais Andes, que teria ocorrido por volta do ano de 1400 do nosso calendário.
Ainda não está claro como isso ocorreu. Em comentário feito a pedido da Nature, Stephan Schiffels e Kathrin Nägele, pesquisadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionista, propõem que navegantes da ilha poderiam ter ido até a costa sul-americana e trazido indígenas consigo para Rapa Nui (a distância até o continente é de 3.700 km, enquanto a que separa o território das ilhas habitadas mais próximas no Pacífico é de 1.900 km). O que é indiscutível é que a mistura genética aconteceu antes do contato dos europeus, considerando justamente o tamanho dos fragmentos de DNA indígena no genoma dos ilhéus. Hoje, a região pertence ao Chile.
Para os pesquisadores, a explicação mais provável para o grande declínio populacional na ilha de Páscoa envolve eventos traumáticos como a chegada de barcos escravistas vindos do Peru nos anos 1860, os quais raptaram um terço dos habitantes, e uma epidemia de varíola que deixou apenas 110 sobreviventes em Rapa Nui.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress