Mães de vítimas da violência policial se tornam pesquisadoras em projeto na UFRJ

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – No Rio de Janeiro, cem mulheres que perderam filhos para a violência de Estado vão se tornar pesquisadoras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e receber bolsas de R$ 700 por mês. O valor será pago para que elas colaborem com um projeto que visa construir políticas para famílias de vítimas letais de agentes públicos.

A iniciativa recebeu R$ 3,5 milhões do Ministério da Justiça e surgiu com a Raave (Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência do Estado), criada pela ouvidoria da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.

As bolsistas da UFRJ vão cumprir carga horária de 20 horas semanais. Entre as tarefas, elas terão que apoiar o acolhimento psicossocial de outras vítimas, mapear redes de apoio da assistência social e do SUS no local onde vivem e assistir a aulas sobre direitos humanos e saúde mental.

Uma das beneficiadas é Sonia Bonfim, 39, que teve filho e marido mortos pela polícia durante uma operação no Rio de Janeiro em 2021.

Samuel, o filho, morreu aos 17 anos. Ele gostava de dançar e sonhava em ser policial militar. O marido, Willian, trabalhava em uma rede de supermercados e como entregador em uma farmácia.

A perda dos familiares transformou a vida de Sonia, que deixou de confiar no Estado para prover segurança. Até o apoio psicossocial oferecido pelo governo foi desencorajador, segundo ela.

“Escutei da psicóloga que eu tinha que refazer minha vida, casar de novo e ter outro filho, como se isso fosse resolver o meu problema e trazer meu filho e meu marido de volta.”

Não foi a primeira vez que a família de Sonia foi afetada por operações policiais. Em 2019, uma de suas filhas, que na época tinha cinco anos, estava saindo da escola e foi atingida na perna por um disparo que, segundo a mãe, foi efetuado por agentes de segurança.

Ela diz que se uniu a outros parentes de vítimas da violência para tentar buscar justiça por conta própria, já que a investigação sobre a morte dos familiares não avançou. Hoje, Sonia participa de manifestações e movimentos sociais contra a letalidade policial. A investigação sobre as mortes do filho e do marido ainda não avançou.

Familiares das vítimas costumam deixar de trabalhar, de cuidar da família e de si mesmos, o que acarreta em piora da saúde mental e física. São sintomas que sugerem um quadro depressivo, segundo Mariana Mollica, professora colaboradora do programa de pós-graduação em teoria psicanalítica da UFRJ.

Somado a isso, a violência faz essas pessoas perderem a confiança nas instituições públicas, o que barra a busca por assistência jurídica e psicossocial.

As bolsistas surgem para restabelecer essa relação: elas vão ter um papel similar ao de agentes comunitários, construindo uma ponte entre os afetados pela violência e os servidores públicos que podem ajudá-los.

“O trabalho delas vai ser, sobretudo, para encaminhar famílias à rede de atendimento”, diz Mariana, que coordena o projeto pela UFRJ.

“Se alguém na comunidade perder um ente querido, elas vão fazer um primeiro atendimento, acolher a família e dar indicação do que fazer para a busca de direitos. Se elas notarem que a mãe não está conseguindo sair da cama ou que o pai está usando drogas, por exemplo, vão ajudar a encaminhar essas pessoas para os Caps [Centros de Atenção Psicossocial].”

As bolsistas também vão acompanhar as famílias para garantir que estejam seguindo o tratamento recomendado. Para isso, vão estudar, com alunos da UFRJ, sobre saúde mental, assistência social, violência de Estado e direitos humanos. Também participarão de grupos clínicos com acadêmicos, em que vão discutir sobre as próprias condições psicológicas.

Mariana diz que ter pesquisadoras não vinculadas à UFRJ é algo inédito, criado especificamente para essa iniciativa.

Por meio de seu apoio à comunidade, as bolsistas vão atuar ao lado de pesquisadores da UFRJ para contribuir com dados, relatos e vivências relacionadas à violência de Estado. Essas informações serão usadas na construção de uma política pública voltada a pessoas na mesma situação.

A maioria das selecionadas são negras com empregos informais e, por isso, vão conciliar a atuação como pesquisadoras ao trabalho. Apesar de quase todas terem perdido parentes em casos de violência policial, também há mulheres que tiveram filhos vitimados por negligência médica na rede pública de saúde.

REDE DE ATENÇÃO A PESSOAS AFETADAS

O projeto na UFRJ partiu da Raave, da Defensoria Pública do Estado. A Raave foi criada após operação policial no Jacarezinho em 2021, que se tornou a mais letal na história do Rio de Janeiro, com 28 pessoas mortas.

Nesse período, grupos de atendimento psicológico e movimentos sociais buscaram a Defensoria para oferecer serviços voluntários aos parentes das vítimas do massacre. A rede surgiu ali, como resposta às preocupações relacionadas a violações de direitos humanos.

Coordenada por Guilherme Pimentel, ex-ouvidor-geral externo da Defensoria, o projeto ainda presta assessoria jurídica, psicológica e social a essas e outras famílias. Ele diz que, com o projeto na UFRJ, o objetivo é permitir uma visão crítica sobre a segurança nas instituições públicas, tanto entre as mães quanto no corpo acadêmico.

“A ideia da Raave é promover atendimentos, estar junto e acolher, mas sempre questionando a violência de Estado para que a gente não se torne apenas mais uma engrenagem nesse sistema.”

LUANY GALDEANO / Folhapress

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