CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Era uma vez uma diva, sinônimo de beleza e sensualidade, que se frustra ao ver sua juventude desvanecer, enquanto uma mulher mais jovem toma o posto da mais bela do reino não tão encantado de Hollywood.
Como acontece com a bruxa de “Branca de Neve e os Sete Anões”, basta uma olhada no espelho para a protagonista de “A Substância” perceber que seus anos áureos ficaram para trás. Num acesso de raiva, ela esfrega o batom vermelho pela cara, repuxa as maçãs do rosto e prende o cabelo com força, antes de tomar uma medida drástica.
Novamente como a vilã do conto de fadas, Elisabeth Sparkle decide recorrer a um estranho tipo de veneno para retomar seu posto, no aguardado filme de Coralie Fargeat. Mas a moral aqui é outra, já que no universo feminista da diretora francesa, bruxas e princesas poderiam conviver em harmonia, não fosse a violência do patriarcado à sua volta.
“Fazer um filme como este é uma experiência catártica”, disse ela após a aplaudida estreia de seu filme no último Festival de Cannes, em maio. “É uma mistura de muitas coisas que quero dizer, de uma raiva que sinto, de tudo o que vivi enquanto mulher. E o cinema de gênero foi o que me permitiu mostrar isso, ao mesmo tempo em que proporciono uma experiência de entretenimento.”
Na festa VIP que encerrou o evento, Fargeat comemorou o prêmio de melhor roteiro que venceu dançando noite adentro, balançando seu pequeno troféu numa mão e o copo de bebida em outra. Um grande feito para uma cineasta que ainda está em seu segundo longa, sete anos depois do também elogiado “Vingança”, outro violento manifesto feminista.
“A Substância”, que chega nesta semana aos cinemas antes de estrear na Mubi, narra a história de Elisabeth Sparkle, estrela do cinema e da TV que, de polainas, acaba comandando um programa de ginástica aeróbica, como os que ganharam popularidade nos anos 1980, conforme Hollywood deixa de procurá-la para novos papéis.
Ela não está infeliz, mas isso muda quando o diretor da emissora para a qual trabalha decide trocá-la por uma apresentadora mais jovem. Com raiva, ela atende o telefone para ouvir uma voz misteriosa que oferece a ela a tal substância do título, capaz de deixá-la mais jovem, mas com um porém seu corpo é o mesmo, e se alterna entre a versão novinha e a mais velha toda semana.
Não demora muito até ela ficar obcecada com a novinha, que a leva a desrespeitar a bula do “ativador” e fazer do filme um “body horror” um terror a partir de violações gráficas do corpo humano, como os de David Cronenberg, uma de suas influências e com quem competiu em Cannes.
Mas não é só a trajetória de Branca de Neve que “A Substância” emula. A presença de um retrato seu reluzente, na parede da sala, remete a “O Retrato de Dorian Gray”, e a relação tóxica entre criador e criatura ecoa “Frankenstein”. “É um filme que bebe de muitos mitos que criamos para lidar com o fato de que vamos todos acabar um dia, de que nossa condição fundamental enquanto seres humanos é sermos mortais”, diz Fargeat.
E há paralelos também com a vida real no caso, a de Demi Moore. Objeto de desejo na Hollywood dos anos 1980 e 1990, a estrela de “Ghost” caiu no ostracismo nas últimas duas décadas, e viu sua aparência ser criticada pelo público, aos 61 anos de idade.
Cirurgias plásticas mudavam seu rosto diante das câmeras, enquanto Moore claramente cedia à pressão de uma indústria que, historicamente, espalha o machismo e o etarismo por meio de produções que reforçam padrões de beleza inatingíveis e papéis de gênero engessados.
Seu retorno triunfal não poderia ser mais significativo, portanto. “A Substância” é como “Birdman” ou “Crepúsculo dos Deuses”, filmes sobre Hollywood em que a arte imita a vida de seus protagonistas no caso, Michael Keaton e Gloria Swanson.
Apesar da poderosa torcida, Moore ficou sem o troféu de atriz do Festival de Cannes, que acabou nas mãos do quarteto feminino do musical “Emilia Pérez”. Uma indicação ao Oscar, porém, não parece delírio, ainda mais para um nome tão querido pela indústria e nunca lembrado pela premiação.
A história de ascensão e queda de Elisabeth Sparkle e também de Moore é comparável à de muitas divas hollywoodianas que, ao envelhecer, viram os bons papéis desaparecer. Isso tem mudado, graças à decisão de nomes como Nicole Kidman e Viola Davis de abrirem suas próprias produtoras, mas o machismo e o etarismo ainda são ameaças, como repetem frequentemente.
Em “A Substância”, o tratamento diferenciado dado a elas é mostrado com afetação, por meio do personagem de Dennis Quaid, o asqueroso diretor de emissora que demite a protagonista. Na mesma faixa etária, ele não se preocupa com a própria aparência, é antipático e tem hábitos de vida longe de saudáveis. Já ela está com o skin care em dia, sorri para todos e tem na ginástica a sua profissão.
“Este filme é qualquer coisa menos convencional, então eu precisava de alguém disposto a correr riscos, a se expor. Quando li a biografia de Demi Moore, vi o quão forte, pioneira e inteligente ela precisou ser para navegar nessa indústria. Era a escolha perfeita”, diz Fargeat sobre a nova musa.
A SUBSTÂNCIA
– Quando Estreia nesta quinta (19), nos cinemas
– Classificação 18 anos
– Elenco Demi Moore, Margaret Qualley e Dennis Quaid
– Produção EUA, Reino Unido, França, 2024
– Direção Coralie Fargeat
LEONARDO SANCHEZ / Folhapress