Mostra de Iberê Camargo revê relação do artista e de sua mulher com lago Guaíba

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Tudo poderia ter ido por água abaixo, literalmente. Mas os 5.000 itens do acervo da Fundação Iberê Camargo, guardiã das obras, das cartas e dos materiais de trabalho do pintor que dá nome à instituição, ficaram a salvo da enchente que inundou Porto Alegre em maio, a pior da história do Rio Grande do Sul.

Diante da tragédia de filme de apocalipse, a exposição inaugurada no museu no último sábado não poderia abordar outro tema que não o lago Guaíba, a um só tempo um cartão postal nas margens do qual a Fundação Iberê foi construída e para o qual ela se vira e também, agora, uma fonte de ameaça, capaz de engolir a capital gaúcha.

“Iberê Camargo – Território das Águas” olha para beleza do passado para tentar fazer sentido do horror do presente. A mostra, organizada por Gustavo Possamai e Blanca Brites, reúne 42 obras —entre pinturas e desenhos—, de Iberê Camargo e de sua mulher, Maria Coussirat Camargo, nas quais o lago Guaíba aparece diretamente ou apenas de forma sugerida.

“Essas obras não têm a figura humana, o que dá força para a ideia da paisagem com a água”, afirma Brites, destacando que o mote da mostra são trabalhos do início da carreira de Iberê, feitos entre 1936 e 1942, um período de formação do artista, quando ele morou em Porto Alegre antes de ganhar uma bolsa de estudos e se mudar para o Rio de Janeiro.

Portanto, a exposição não apresenta as pinturas de carretéis, bicicletas e seres fantasmagóricos, temas tão presentes na iconografia do artista gaúcho, mas sim paisagens ora bucólicas, do interior profundo do Rio Grande do Sul, ora urbanas, em que as águas do Guaíba margeiam uma Porto Alegre que começava a tomar a forma de cidade grande.

Parte das pinturas têm uma luz mais clara e um ar de placidez, como uma em que Iberê retratou telhados e chaminés de fábricas, em primeiro plano, e o lago Guaíba ao fundo. Mas outras obras são furiosas, sombrias, a exemplo de um desenho com grafite no qual as águas, de aspecto aveludado, parecem um céu fechado por nuvens pesadas de tempestade.

A organizadora destaca, já nas obras de formação, aspectos plásticos que mais tarde se tornariam uma marca do artista —as pinceladas soltas e o uso da espátula como ferramenta de pintura, que deixava uma crosta de tinta na tela. Brites também conta que, naquele final da década de 1930, Iberê “queria fazer [os quadros] com pressa, capturar o momento sem retornar, sem refazer, pegar a essência invisível do momento da criação”.

Os trabalhos em exibição têm um significado especial —a maioria deles compôs a primeira mostra individual de Iberê, que lhe renderia o prêmio com o qual pôde se mudar para o Rio. A exposição traz também uma parede de pinturas, nunca antes vistas pelo público, de sua mulher e parceira criativa.

As telas de Maria Coussirat Camargo, do período em que cursava artes plásticas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no final da década de 1930, retratam mais ou menos as mesmas paisagens representadas pelos pincéis de seu marido —de tão semelhantes, algumas sugerem que o casal pintou a partir de um mesmo ponto de vista. Contudo, ela empregava uma paleta de cores em geral mais vibrante do que a de Iberê.

Existem poucas obras conhecidas de Coussirat. Mal depois de começar a carreira, ela abandonou as pretensões como artista e passou a se dedicar integralmente à vida do marido, para quem fornecia telas, tintas e comentários sobre suas pinturas. “É uma maneira de ser dela também aquele fazer [do Iberê]. O fazer dele também é em função das condições que ela permite”, afirma a organizadora.

Na exposição há ainda fotografias que mostram Iberê junto a seus rios preferidos, como o Jaguari, no interior do estado, que dá nome à uma cidade onde ele morou quando criança, e uma seleção de frases nas quais ele questiona o apropriamento predatório que Porto Alegre fez das águas do Guaíba, com os sucessivos aterramentos ao longo dos anos. Tudo foi dito há décadas, mas se encaixa no presente.

“Vocês mataram o Guaíba, não é? Isto é um crime, e muito grave”, disse o artista. “É curioso que as pessoas não se apercebam dos perigos.”

IBERÊ CAMARGO – TERRITÓRIO DAS ÁGUAS

– Quando Até 23 de fevereiro de 2025. Visitação de quinta a domingo, das 14h às 18h

– Onde Fundação Iberê Camargo – av. Padre Cacique, 2.000, Porto Alegre

– Preço Grátis

JOÃO PERASSOLO / Folhapress

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