CAMPINAS, SP (FOLHAPRESS) – Exames laboratoriais usam parâmetros de referência baseados em pacientes brancos e desconsideram particularidades genéticas e populacionais dos brasileiros, mostra um estudo da pesquisadora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) Tatiane Muniz.
Os profissionais de saúde precisam interpretar os resultados de pacientes negros a partir de cálculos baseados em índices de correção, o que a autora chama de “calibragem racial”.
O artigo foi publicado em coletânea da Associação Brasileira de Antropologia, com trabalhos que articulam ciências sociais, biotecnologia e saúde pública.
O hemograma, por exemplo, usa a taxa normal de leucócitos (glóbulos brancos) em pessoas brancas para avaliar qualquer paciente, apesar de estudos internacionais indicarem que os valores são diferentes para brancos e negros.
O mesmo acontece em exames usados para diagnosticar glaucoma, em que os parâmetros consideram características oculares da população branca analisada em estudos europeus, desprezando as particularidades de pessoas negras do Brasil.
“Meu trabalho questiona a neutralidade dos corpos na biotecnologia. Os corpos são diversos e, se as práticas, intervenções e pesquisas em saúde não consideram essa diversidade, contribuem para um suposto discurso de neutralidade que é sempre branco”, diz Muniz.
A cientista baseou sua análise etnográfica na observação de práticas e narrativas de profissionais da biomedicina em universidades, congressos e clínicas, em Porto Alegre, entre 2016 e 2019.
No Brasil, a miscigenação também é um fator importante na discussão sobre a racialização da biotecnologia. A população brasileira é resultado de uniões entre europeus, indígenas, africanos e asiáticos desde os anos 1500. Isso gerou uma diversidade genética que diverge de parâmetros raciais e clínicos estabelecidos em países da Europa e da América do Norte.
O diagnóstico de glaucoma, por exemplo, é feito por meio da medição do fundo do olho. A literatura internacional mostra que os olhos dos negros costumam ter disco óptico com diâmetro maior e espessura da córnea menor do que os dos brancos. Logo, os parâmetros de avaliação não se aplicam da mesma maneira para toda a população.
Além disso, os critérios usados para categorizar brancos e negros nos estudos internacionais não servem para a população miscigenada do Brasil. Falta conhecimento científico sobre a genética dos brasileiros para avançar em pesquisas de saúde, diz o oftalmologista e ex-presidente da Academia Nacional de Medicina Rubens Belfort Jr.
“O negro do Brasil é diferente do negro da América do Norte, da Europa ou da África. Faltam informações sobre os pacientes abaixo da linha do Equador e, especificamente, do Brasil, como: quais são as características dos olhos e como o glaucoma avança nas populações indígenas, afro-brasileiras e ásio-brasileiras”, explica Belfort.
Na hematologia, uma das poucas pesquisas feitas com a população brasileira contrariou estudo semelhante dos Estados Unidos. A pesquisa coletou amostras de sangue de 289 soteropolitanos, todos com ascendência africana, europeia e indígena, com 49,5% se identificando como negros. Ao contrário da literatura internacional, o estudo não encontrou diferenças nos valores de leucócitos de brancos e negros.
Segundo o artigo, publicado na Revista Brasileira de Hematologia e Hemoterapia, não há uma estrutura genética específica na população analisada por causa do “alto nível de heterogeneidade”. Também não seria útil estabelecer parâmetros diferentes para cada grupo étnico, uma vez que “todos os indivíduos apresentam um grau de mistura”.
O IBGE divide a população em branca, preta, parda, indígena e amarela. Mas não existem critérios universais para classificar cor ou raça. Na prática, países, centros de pesquisa e indivíduos classificam os grupos com base na sua história, escreve a antropóloga Elena Calvo-González em seu artigo publicado no periódico científico Frontiers in Sociology.
Exemplo é que o critério racial pode mudar a depender do lugar -ainda que no mesmo país. Da mesma forma que quem é considerado branco no Brasil não é considerado branco na Escandinávia, não é possível igualar um branco de São Paulo com outro da Bahia. “Por isso é tão perigoso categorizar pessoas no meio médico”, afirma a pesquisadora.
Ela argumenta que é preciso ter atenção à heterogeneidade genética em vez de presumir informações sobre um indivíduo com base na categoria racial. “Quando falamos em genética, essa classificação apaga a história individual, familiar e da região em que a pessoa vive, reduzindo-a a uma categoria supostamente universal e aplicável em vários países.”
No geral, Muniz e Calvo-González questionam a ideia de normalidade associada a raça. “Ao usar indicadores de corpos brancos e europeus como padrão normativo em exames clínicos, constrói-se a ideia de que eles são normais e os corpos não brancos do sul global [termo se refere a países que passaram por processos de colonização, como os da América Latina, África e Ásia], anormais ou patológicos”, afirma Muniz.
Elas ressalvam que, fora da genética, a categorização racial é interessante para discutir outras questões de saúde, como o acesso de grupos étnicos a serviços e tratamentos, e para formular políticas públicas que combatam o racismo estrutural.
Esta reportagem foi produzida durante o 9º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que contou com o patrocínio do Laboratório Roche e do Hospital Israelita Albert Einstein.
BEATRIZ ORTIZ / Folhapress