TREs (Tribunais Regionais Eleitorais) do país têm considerado o nível de sofisticação e a capacidade de o conteúdo enganar o eleitor para a caracterização de deepfakes nas eleições de 2024.
Decisões de segunda instância da Justiça Eleitoral mostram que não basta a criação ou a manipulação de conteúdo com o emprego de inteligência artificial. É preciso verossimilhança e potencial de dano.
Assim considerou a desembargadora Maria Claudia Bedotti, do TRE de São Paulo, ao votar pela negativa de recurso apresentado pelo MDB de Ricardo Nunes contra Tabata Amaral, do PSB.
O partido do atual prefeito da capital e candidato à reeleição afirmou que a adversária dele na corrida eleitoral criou um deepfake para ridicularizá-lo durante a fase da pré-campanha.
Tabata havia postado em abril um vídeo nas redes sociais em que se via o rosto de Nunes sobre o de Ryan Gosling em cena do filme “Barbie”, no qual o ator interpretou o personagem Ken.
Bedotti disse que deepfake é a “falsificação profunda (em tradução livre) que torna difícil distinguir a realidade da manipulação digital”. Por isso, rejeitou a classificação, entendimento seguido pelo tribunal.
Para ela, não existia a “mínima possibilidade” de o eleitorado entender que o prefeito abandonou a política para “assumir qualquer outra posição, seja de namorado da Barbie ou de dançarino/cantor”.
Há casos nos quais a Justiça Eleitoral nem mesmo analisa o mérito da publicação. Restringe-se a questões processuais. Mas, quando o faz, o padrão até o momento é o de avaliar se o tratamento teve refinamento o suficiente.
Isso ocorreu em julgamento do TRE do Rio Grande do Sul sobre uma montagem com a dupla de palhaços Patati e Patatá com os rostos Levi Lorenzo Melo (Podemos), vice-prefeito de Gravataí, e Regis Fonseca, secretário municipal de Saúde.
O relator, desembargador Volnei dos Santos Coelho, considerou que a montagem não utilizou técnicas sofisticadas de manipulação e que era “grosseira, rústica, incapaz de enganar os eleitores”.
Miguel Novaes, sócio do escritório FRN Advogados, entende ser necessário fazer uma separação com relação às ferramentas. Ele avalia que a aplicação pela Justiça tem sido adequada pelo que se depreende da regra eleitoral.
A proibição, de acordo com ele, está enquadrada nas normas contra a desinformação, de modo que a lógica é justamente coibir o falseamento de uma informação que pretende se passar por verdadeira.
“Questões muito grosseiras podem ser consideradas propaganda irregular se violarem a honra de um candidato ou de alguma figura, mas não deepfakes”, afirma ele. “Tem que haver de fato um potencial de aquilo também de causar uma confusão”.
Newsletter FolhaJus A newsletter sobre o mundo jurídico exclusiva para assinantes da Folha *** Apesar de majoritária, a interpretação não é unanimidade. O TRE de Minas Gerais manteve condenação de Leonídio Bouças (PSDB), candidato a prefeito de Uberlândia (MG), e do vice dele, Gustavo Galassi (Republicanos), à multa de R$ 5.000 cada pelo emprego da tecnologia.
Os candidatos publicaram nas redes sociais um vídeo manipulado digitalmente contendo cena na qual Galassi recebe um abraço do falecido avô Virgílio Galassi, ex-prefeito de Uberlândia por quatro mandatos.
A corte mineira julgou, em outro processo envolvendo o mesmo caso, não importar se havia informação de que o conteúdo tinha sido gerado por inteligência artificial nem mesmo se o objetivo era uma homenagem.
Embora fosse “para as pessoas saberem do aniversário do avô de Gustavo e mesmo que ele não tenha trazido impactos ao pleito”, escreveu a juíza Flávia Birchal, “a proibição é total, independentemente de induzir ou não o eleitorado a erro”.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) proibiu deepfakes nas eleições em fevereiro deste ano. A regra fala somente em conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou ambos gerado ou manipulado para criar, substituir ou alterar imagem ou voz.
Professora e pesquisadora de direito eleitoral digital, Stefani Vogel diz que a definição está relacionada à técnica empregada, e não necessariamente ao grau de sucesso em enganar as pessoas.
Embora o potencial de enganar seja uma característica importante, para ela, “mesmo que o deepfake seja mal executado ou fácil de identificar como falso, ele ainda é classificado como tal se tiver sido produzido com as mesmas tecnologias”.
A advogada Bruna Borghi, sócia na área de direito eleitoral empresarial e digital no escritório TozziniFreire Advogados, diz que ainda existem poucos casos nos quais o tema é tratado com profundidade, na casa das dezenas.
Portanto, uma consolidação do entendimento que permita apontar uma direção de como o tema será enfrentado pelo Judiciário só deve vir com o julgamento da matéria pelo TSE, e isso quando a corte julgar um conjunto de processos.
“É muito difícil antecipar uma tendência com base nesse cenário. Podemos indicar a questão do nível de sofisticação pelo que tem sido decidido, mas não é algo que está escrito, não é uma regra clara. Precisamos acompanhar mesmo.”
ARTHUR GUIMARÃES / Folhapress