SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Parlamentares, instituições como a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e integrantes do governo propõem limitar de alguma forma apostas por beneficiários do Bolsa Família. Mas a corrida pelo endurecimento de regras esbarra em controle moral e na liberdade dos mais pobres sobre suas finanças, segundo especialistas consultados pela reportagem.
Mais de 12 projetos de lei sobre bets em geral foram protocolados na Câmara dos Deputados desde que o Banco Central mostrou que pessoas que recebem o benefício apostaram R$ 3 bilhões nesses sites apenas em agosto. E o governo deve vetar o uso do cartão de bébito do Bolsa Família nesses sites.
Um projeto de lei apresentado na quarta-feira (25) pelo deputado Tião Medeiros (PP-RR) prevê a perda do benefício para participantes de programas sociais que gastarem dinheiro nessas plataformas.
“A sociedade inteira trabalha para sustentar a transferência de renda. É importante, mas não é para sustentar as pessoas, é para dar suporte diante dificuldade. Se há renda extra para fazer jogo, é porque não precisa mais do benefício”, diz o deputado.
“Quem está sendo punido é a sociedade, que está pagando a conta da pessoa.”
Reginaldo Lopes (PT-MG), por outro lado, é autor de outro PL que sugere multas de até 20% sobre a arrecadação das empresas que aceitem transferências de contas bancárias do Bolsa Família. Ele afirma querer “combater o traficante, e não o viciado”.
“Não devemos cobrar do cidadão, enganado por propaganda de tigrinho”, diz.
Mas apostas não podem ser vistas como comportamento irracional específico de pessoas em situação de pobreza, de acordo com especialistas. No total, de acordo com o BC, os brasileiros apostaram R$ 21,1 bilhões em apostas em agosto via Pix.
Apesar de necessária, a proteção aos mais vulneráveis se mistura a uma “regulação moral” aos usuários do Bolsa Família, segundo Gabriela Lotta, professora de administração pública da FGV.
“O problema das apostas é um fenômeno amplo da sociedade, mas os acusados são os que recebem recursos diretos de transferência. Essa crise é uma janela de oportunidade para quem é contra o Bolsa Família ter uma justificativa de criticar os beneficiários e de diminuir a liberdade deles” diz.
Famílias beneficiárias devem cumprir com algumas condicionalidades para continuar recebendo os benefícios do Bolsa Família. Na área de saúde, as crianças menores de 7 anos devem cumprir o calendário de vacinação e realizar acompanhamento do estado nutricional e gestantes devem realizar o pré-natal. Na área de educação, as crianças, adolescentes e jovens devem frequentar a escola. Não há condicionalidade relacionada ao uso do dinheiro.
Artigo científico recentemente disponibilizado no diretório SSRN mostra que apostas reduzem a poupança das famílias mais pobres dos EUA, com quase 40% dos apostadores fazendo mais de dez depósitos nos sites, uma indicação de vício. A cada US$ 1 investido em bets, a poupança das famílias cai US$ 2, com aumento substancial das dívidas de cartão de crédito, segundo o estudo.
No Brasil, levantamento do Instituto Locomotiva divulgada no mês passado mostra que 86% dos apostadores têm dívidas e 64% estão com o nome sujo.
Outro ponto levantado por especialistas é que beneficiários do Bolsa Família podem ter outras fontes de renda. Assim, nem sempre estariam apostando dinheiro que saiu de cofres públicos.
Dados da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) mostram que, até abril de 2024, 80% dos beneficiários do Bolsa Família no estado de São Paulo pertenciam a famílias com renda mensal de até R$ 218 per capita. Os 20% restantes eram de famílias com rendimentos mensais entre R$ 218 e R$ 706 per capita.
Nova regra implementada em junho de 2023 permite que famílias permaneçam no programa por até 24 meses recebendo 50% do benefício, mesmo se a renda aumentar para além do limite de entrada, desde que não ultrapasse meio salário-mínimo per capita.
“Se ela teve uma renda extra de R$ 50 e quer apostar, como você vai regular isso? São liberdades inalienáveis”, diz Flávio Eiró, cientista social e professor na Universidade Livre de Amsterdã.
“Nunca foi o objetivo do Programa Bolsa Família controlar o dinheiro repassado. Isso seria caro e ineficaz”, diz o pesquisador, que estudou o programa de transferência de renda na tese de doutorado.
Para Lauro Gonzalez, coordenador do Cemif (Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), alternativa melhor do que segmentar apostadores por renda seria um limite único de valores apostado para um dado intervalo de tempo para todas as faixas salariais.
Ele também defende a vedação do uso do cartão de crédito, proposta apoiada pelo setor do varejo e que recebeu aceno de associadas à Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) na quarta-feira (25).
“Seria uma espécie de discriminação algo que se aplica só a certa camada da população. O endurecimento teria que vir para todos”, diz Gonzalez.
A chegada das apostas aos usuários do Bolsa Família, é preocupação do governo. O ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, disse à Folha que Lula pediu “urgentes providências” sobre o tema. A pasta é responsável pelo programa.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a pasta trabalha em conjunto com o ministério da Saúde para cruzar dados sobre apostadores que possam se viciar.
“Nós teremos no ministério um sistema que impedirá a pessoa de apostar com o cartão de crédito, acompanhará CPFs e poderá dar alerta com relação a pessoas revelando dependência psicológica”, disse, durante evento em São Paulo na quarta-feira (26). “O objetivo do governo federal em relação ao tema é tratar as pessoas”.
Maycon Torres, professor de psicologia clínica e saúde mental na Universidade Federal Fluminense (UFF), entende que o problema das bets deve, assim como sinalizado pelo ministro da Fazenda, ser tratado de forma integrada com a pasta da saúde.
“O problema das bets exige soluções mais criativas por parte do governo, conscientização e barreiras práticas precisam andar juntas. As barreiras são burláveis e a conscientização sozinha pode ser frágil”, afirma.
LAURA INTRIERI / Folhapress