Atingidos e voluntários nas enchentes refletem sobre cultura e tradição no RS

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – A 42ª edição do acampamento farroupilha de Porto Alegre, encerrada no domingo (22), marcou um reencontro do público com a tradição gaúcha após a pior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul.

O parque da Harmonia, que sedia o evento, ficou submerso quando o lago Guaíba invadiu a cidade. Quatro meses depois, milhares de pessoas voltaram a circular pelo espaço, acompanhando eventos culturais os churrascos que aconteciam quase diariamente em cada um dos 183 piquetes.

Esta semana, o estado voltou a enfrentas tempestades e enchentes, em uma intensidade menor do que as registradas em maio.

A Folha de S.Paulo conversou com frequentadores do acampamento, que contaram suas histórias vividas em meio à enchente, e compartilharam suas perspectivas sobre cultura e persistência ao responderem sobre o que consideram que significa ser gaúcho.

João Lucas Carvalho, 29

Comerciante, participou de resgates a barco na região metropolitana de Porto Alegre

Ser gaúcho é muito mais do que uma posição geográfica. É uma opção, tu escolhe ser. Tenho amigos de outros estados que se sentem gaúchos porque abraçaram a nossa causa, viram o que realmente é ser gaúcho. É o espírito de companheirismo, de respeito, de cumplicidade com as pessoas.

Em Eldorado do Sul [uma das cidades mais afetadas pelas enchentes], a gente conseguiu arrombar o supermercado com a autorização da prefeitura. Quebramos o cadeado, pegamos tudo que era perecível de carne e fizemos churrasco para o pessoal se alimentar, porque já estavam há dois, três dias isolados sem água, sem comida. É uma cena que ainda martela muito na minha cabeça.

Eu vi todo mundo perder basicamente tudo que tinha, e cada um salvava qualquer coisa que conseguia. Alguns salvavam uma TV, outros salvavam um computador. E esse cara, na minha cabeça, veio na água com uma boneca, e eu não quis argumentar o porquê. Quando ele virou para mim, era um neném.

Hoje, eu sou padrinho da Maria Laura.

Francisco Alberton, 57

Patrão do 35 CTG, o mais antigo do estado, que funcionou como centro de doações

Em maio, não dava nem tempo para parar. Às vezes, nem conseguimos acompanhar as notícias, porque estávamos diretamente envolvidos no CTG, dia e noite, recebendo e distribuindo os donativos.

Foi algo que surgiu naturalmente. Se tivéssemos planejado, talvez não teria saído tão bem. Nos primeiros dias, o pessoal chegava e a gente dizia “vai lá, vai se virando”. Uns quatro dias depois, começamos a cadastrar as pessoas para garantir que tudo fosse distribuído de forma correta.

Quando percebemos, o CTG já estava lotado. Voluntários chegavam a todo momento, trazendo roupas e alimentos. Nos primeiros dias, ficávamos das 9h até meia-noite, e depois até 2h da manhã. Trinta dias intensos.

Ser gaúcho é ser solidário, hospitaleiro, e manter a cultura para a próxima geração. Quando a gente vai nos eventos culturais, tem bastante jovens participando. Isso que a gente quer, passar adiante.

Elisabete Fortes Rodrigues, 62, e Paulo Cesar Oliveira Viegas, 64

Aposentados, atingidos pela enchente na zona norte de Porto Alegre

Até maio, a gente morava um em cada casa, mas a enchente pegou ele de surpresa. Ele foi para um amigo que mora em um prédio de dois andares, e dois dias depois, a enchente já estava subindo no prédio. Ele pediu socorro para a filha dele, a água já estava chegando no pescoço, e ela conseguiu um jet ski que salvou ele à noite. Eu estava cuidando da minha mãe em área segura, que graças a Deus não inundou.

Entrou mais de 2 metros de enchente na casa. As irmãs dele são casadas e têm filhos, então pensei: “como é que ele vai para lá fazer faxina sozinho?”. Aí eu decidi fazer a faxina com ele, e optamos por morar juntos, para poder ajudar melhor. Ele já é meu companheiro há mais de 20 anos, nas horas boas e ruins, cuida bem da minha filha. É um bom marido.

Ser gaúcho é um orgulho, porque somos muito unidos. Quando fomos para casa depois da enchente, ganhamos colchões, roupas de cama, marmita, rancho de supermercado. Não faltou nada para nós. A única coisa que não temos ainda são os móveis, mas estamos bem.

Nara Oliveira, 54

Empresária, patroa do CTG Sentinela dos Pampas, que operou como abrigo

O que mais representa o sentinela é o grito do pássaro quero-quero. Ele está sempre em alerta no campo. Se lá vem um movimento, já sai gritando. Deu a enchente, e o que o sentinela fez? Se alertou.

Eu achei que eu nunca ia ver isso na minha vida. Aquelas pessoas perderam tudo do nada, foi muito rápido, mal deu tempo para salvar as suas vidas.

Abrigamos no CTG umas 150 pessoas, sem olhar a quem. A gente recebia em torno de 300 marmitas por dia de restaurantes e gente em casa fazendo lanche. Nos dividimos em equipes de cozinha e faxina, e mais de 300 pessoas ajudaram.

Desde o passado, da Guerra dos Farrapos, estamos sempre fortes e bravos. Ser gaúcho é uma força que vem da gente mesmo, de lutar pelo que a gente quer. Caiu tudo, mas a gente levanta.

O povo gaúcho agradece toda a nação brasileira. Nesse parque, a água ultrapassava a nossa cabeça. E o que aconteceu? Os outros estados vieram nos ajudar. Veio helicópteros, bombeiros, equipes de São Paulo, Ceará, Santa Catarina, todos os lugares. Só quem viveu sabe, então a gente agradece.

CARLOS VILLELA / Folhapress

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