ESTRELA, RS (FOLHAPRESS) – Parado em frente a um galpão com partes das paredes arrancadas pela cheia do rio Taquari, o produtor rural Fernando Mallmann, 40, faz uma pausa de segundos. Parece tomar ar antes de dizer como pretende reerguer sua propriedade no município gaúcho de Estrela (a 110 km de Porto Alegre).
“Precisamos contratar uma equipe com máquinas pesadas para emparelhar o solo. Não vai ser fácil, é um investimento, e estamos bem descapitalizados”, afirma o produtor, que veste um moletom preto com a palavra “humano” escrita em letras coloridas na altura do peito.
A renda dele e dos pais vinha da venda de leite antes das enchentes que devastaram regiões do Rio Grande do Sul há exatos cinco meses, entre o final de abril e o início de maio. Segundo a Defesa Civil do Rio Grande do Sul, a primeira morte em decorrência das fortes chuvas foi reportada ao órgão à 0h12 do dia 30 de abril.
Com os prejuízos da catástrofe ambiental, considerada a maior do estado, Mallmann decidiu abandonar a pecuária leiteira. Das 26 vacas da propriedade, somente 11 sobreviveram à tragédia. Elas já foram negociadas.
Agora, o produtor reorganiza a terra para focar no plantio de grãos, especialmente milho e soja. Também estuda apostar em culturas que garantam mais de uma safra por ano, como feijão e frutas.
A ideia é diminuir perdas financeiras em caso de novas enchentes, além de fazer um investimento mais baixo em relação ao que seria necessário para o leite.
Recuperar o solo, que ficou desnivelado, é um dos principais desafios. No fim de julho, quando a Folha de S.Paulo esteve no local, trechos de terra ainda acumulavam alagamentos, já que a drenagem ficou comprometida.
Carros e escombros arrastados pelo Taquari seguiam perdidos em meio a áreas de lavoura. O milho que antes era cultivado na propriedade servia sobretudo para a alimentação das vacas.
“Tem áreas em que a enchente levou a camada fértil. Em outras, deixou areia”, lamenta Mallmann.
A exemplo dele, outros produtores gaúchos também buscam caminhos alternativos para recuperar a renda após a tragédia ambiental. Em parte dos casos, mudar de atividade é uma das possíveis saídas.
“Em parreiras de uva na Serra, por exemplo, a avalanche desceu e levou tudo. O produtor muitas vezes não tem como investir de novo. Fica muito caro”, afirma Carlos Joel da Silva, presidente da Fetag-RS (Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul).
“Ou ele muda de atividade ou ele sai [do campo]”, completa. A Fetag-RS representa agricultores e pecuaristas familiares.
‘O CARA PRECISA SER REALISTA’, DIZ PRODUTOR
A propriedade rural de Jorge Dienstmann, 52, também passa por mudanças em Estrela, depois de três enchentes desde setembro do ano passado.
Na cheia mais recente, no começo de maio, o rio Taquari derrubou dois aviários, além de destruir parcialmente um terceiro galpão destinado à criação de frangos.
Cerca de 60 mil aves morreram na ocasião. A fúria da água ainda estragou instalações e equipamentos usados na produção de leite.
Com os prejuízos, Dienstmann decidiu abandonar a criação de frangos e vender as vacas. Ele planeja cultivar grãos, especialmente soja.
“Depois de três cheias, uma atrás da outra, o cara precisa ser realista. Precisa dizer um ‘basta'”, declara.
O produtor também prevê desafios para a recuperação do solo. “Precisa ser recuperado com matéria orgânica, com adubação. Vai levar cinco ou seis anos para voltar a ser o que era”, projeta.
Dienstmann fala em começar a plantar onde for possível a partir de outubro ou novembro. “A gente vai plantar o que der. O resto, paciência.”
TRAGÉDIA IMPACTA 206,6 MIL PROPRIEDADES
Relatório da Emater-RS divulgado em junho apontou que 206,6 mil propriedades rurais do Rio Grande do Sul sofreram impactos das chuvas de abril e maio.
Em sua composição, a agropecuária local tem grande influência de pequenos produtores.
Segundo a edição mais recente do Censo Agropecuário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), relativa a 2017, do total de 365,1 mil estabelecimentos agropecuários do estado, 80,5% (293,9 mil) foram classificados na categoria de agricultura familiar. A proporção nacional foi menor, de 76,8%.
“Existem propriedades de médio e grandes produtores que também foram atingidas [pelas enchentes], mas a grande maioria é da agricultura familiar”, afirma o diretor técnico da Emater-RS, Claudinei Baldissera.
Ele diz que as perdas ocorreram principalmente nas regiões dos vales, como o do rio Taquari, e da Encosta da Serra.
Ainda de acordo a Emater, 405 municípios relataram perdas de fertilidade e solos por erosão hídrica, número equivalente a 81,5% do total de cidades no estado (497). Os estragos atingiram uma área de 2,7 milhões de hectares.
A Emater, aponta Baldissera, está atuando em conjunto com outras instituições para dar respostas técnicas sobre a retomada. Segundo o diretor, o tempo para recuperação total da fertilidade das terras tende a variar de acordo com o nível dos estragos.
“Nos graus severos, certamente são sequências de anos. O que ocorreu foi o carregamento de uma história de conservação”, afirma.
A Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul diz que já executou dois programas de recuperação de solo em razão de problemas climáticos no ano passado. O investimento para reconstrução de cada hectare ficou em torno de R$ 6.000, conforme a pasta.
Considerando esse valor aproximado e a área perdida nas enchentes deste ano (2,7 milhões de hectares), seriam necessários cerca de R$ 16 bilhões em ações de recuperação, em uma situação hipotética. A secretaria, porém, diz que nem todos os locais afetados ficam em espaços cultiváveis.
O secretário estadual de Desenvolvimento Rural, Vilson Covatti, declara que a recuperação do solo será uma das prioridades da sua gestão. Ele assumiu a pasta em agosto.
“Os especialistas, principalmente os agrônomos da Emater, estão projetando uma recuperação total do solo no máximo em cinco anos. Claro, a gente vai fazendo por etapas”, afirma.
Conforme Covatti, a catástrofe ambiental “abalou o psicológico” dos produtores, mas a ideia da secretaria é criar condições para que as famílias permaneçam em suas atividades.
Na terça (24), o DEE (Departamento de Economia e Estatística), vinculado ao governo estadual, divulgou dados positivos sobre o desempenho da agropecuária no PIB (Produto Interno Bruto) gaúcho do segundo trimestre. O órgão disse que o setor cresceu 5,3% em relação aos três meses anteriores e 34,6% frente a igual período de 2023.
Os números, contudo, não significam que a agropecuária tenha passado incólume pelas enchentes, pondera o pesquisador Martinho Lazzari, do DEE.
Ele diz que boa parte da safra já havia sido colhida antes de maio e que 2023 havia sido marcado por seca, o que ajuda a explicar o salto de 34,6%. Sem as enxurradas, o crescimento poderia ter sido maior, e os produtores não teriam sofrido as perdas de capital que sentiram.
“As enchentes prejudicaram a produção agrícola, principalmente soja e milho. Talvez o efeito não tenha sido tão grande porque a maior parte já havia sido colhida. E, como a gente também compara com o ano passado, de estiagem, há um crescimento bastante robusto”, afirma Lazzari.
De acordo com o técnico, o possível impacto da chegada do fenômeno La Niña é um ponto de atenção para os próximos meses.
A ocorrência de um evento de fraca intensidade, com chuvas ligeiramente abaixo da média histórica, deve marcar o clima nos meses de outubro, novembro e dezembro, segundo boletim trimestral do Copaaergs (Conselho Permanente de Agrometeorologia Aplicada do Estado do Rio Grande do Sul). O documento foi publicado na quarta (25).
LEONARDO VIECELI / Folhapress