DNA de queijo chinês de 3.500 anos revela evolução de bactérias lácticas e origens do kefir

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos anos 1990, arqueólogos chineses estavam escavando a Bacia de Tarim, uma região desértica em Xinjiang, quando encontraram dezenas de múmias datadas de cerca de 3.500 anos atrás. Nas tumbas de Xiaohe, como é chamado o sítio arqueológico, as múmias estavam enterradas com objetos curiosos em volta de seus pescoços. Há dez anos, foi identificado que se tratava de pedaços de queijo feito com kefir. Agora, uma análise do DNA das bactérias presentes no queijo mais antigo do mundo sugere uma nova hipótese para a origem do kefir.

O estudo publicado na última quarta-feira (25) na revista científica Cell encontrou bactérias Lactobacillus no material do queijo antigo. A análise do DNA bacteriano aponta que a origem das bactérias é a região do Tibet, o que desafia a crença de que o kefir se originou nas montanhas do Cáucaso, onde hoje fica a Rússia.

Atualmente, existem dois grupos de bactérias, um de cada região. O tipo russo é utilizado até hoje nos Estados Unidos, Japão e países europeus na produção de iogurte e queijo.

O kefir é um tipo de bebida fermentada no leite, feita com os grãos de kefir, que são colônias de bactérias e leveduras. O queijo encontrado com as múmias chinesas foi feito a partir deste leite, indicando que os povos antigos da Idade do Bronze já consumiam e aplicavam a técnica de fermentação em sua dieta e hábitos alimentares.

“Parece que o povo Xiaohe adotou ativamente a criação de animais e o queijo kefir se tornou parte importante de sua cultura”, afirma a paleogeneticista Qiaomei Fu, autora do artigo publicado na Cell e diretora do laboratório de DNA antigo no Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia em Pequim, em entrevista à Folha. “Posteriormente, a produção de fermentados se espalhou ainda mais pelo leste da Ásia continental.”

Isso mostra, segundo a pesquisadora, que os antepassados usaram sua sabedoria para aplicar e domesticar micróbios na produção e conservação de alimentos fermentados, o que promoveu intercâmbios técnico-culturais e também influenciou a evolução dos microrganismos.

O grupo chinês descobriu que os queijos foram feitos com leite de vacas e de cabras. Curiosamente, o estudo aponta que o povo Xiaohe não misturava os dois tipos de leite, o que indica uma prática diferente da que acontecia na produção de queijo no Oriente Médio e na Grécia. Os motivos para eles usarem uma técnica diferente ainda não está claro.

A amostra ficou guardada com o grupo de cientistas por mais de uma década, pois não havia tecnologia suficiente para desvendar sua composição completa. “Projetamos sondas específicas para extrair os genomas de Lactobacillus kefiranofaciens”, conta Fu. Sua equipe encontrou as espécies Lactobacillus kefiranofaciens e Pichia kudriavzevii, comumente encontradas nos grãos de kefir modernos.

Mas, depois de obter os dados por meio de técnicas de sequenciamento genético do DNA mitocondrial das bactérias, foram realizadas análises comparativas entre as espécies antigas e as modernas dos microrganismos. O estudo aponta similaridades entre elas, mas diferenças em algumas funcionalidades e sugere três trajetórias na adaptação do L. kefiranofaciens.

Primeiro, a adaptação aos estresses ambientais, como o surgimento de genes e mecanismos de resistência aos medicamentos nas cepas modernas. Em segundo lugar, o reforço de mecanismos de defesa e, em terceiro, adaptações ao ambiente intestinal humano. “As cepas modernas ganharam agrupamentos de genes que interagem potencialmente com o intestino do hospedeiro, o que é provavelmente resultado de suas interações de longo prazo com os humanos”, explica Fu.

Em interação com os organismos humanos, os microrganismos dos grãos de kefir participam da síntese de nutrientes e da eliminação de toxinas. “Os fermentadores desempenharam um papel importante na vida cotidiana dos humanos antigos, e eles propagaram estes micróbios por milhares de anos sem sequer saber de sua existência”, comenta a paleogeneticista.

A disseminação da tecnologia de fermentação dos laticínios foi amplamente acompanhada pela migração e interações humanas, diz Fu, o que impulsionou a evolução das bactérias lácticas. “A separação das duas linhagens de L. kefiranofaciens é provavelmente resultado da dispersão de seu ancestral comum, inicialmente domesticado em diferentes populações”, afirma a pesquisadora.

O grupo pretende processar ainda mais amostras biológicas do queijo mais antigo do mundo, como cálculos dentários ou vestígios fecais fossilizados e usar genomas microbianos para investigar as atividades humanas do passado. Os cientistas esperam revelar hábitos de estilo de vida, saúde e adaptações ao meio ambiente tanto dos antepassados quanto dos próprios microrganismos.

LETÍCIA NAÍSA / Folhapress

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