SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Os suicídios entre indígenas no Brasil aumentaram 56% em 2023 na comparação a 2022. Foram 180 casos, contra 115. A maioria dos suicídios foi de homens na faixa etária dos 20 aos 59 anos. Entre os muito jovens, indígenas com até 19 anos, foram 59 -mais de um terço do total registrado no ano.
Os dados foram levantados no último relatório anual do Cimi (Conselho Missionário Indigenista) sobre violência contra povos indígenas, cuja base são os registros do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) e da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena).
Os suicídios estão relacionados ao aumento da violência contra os povos indígenas e à falta de assistência médica, diz Lucia Helena Rangel, coordenadora do relatório.
“Quando a gente faz a relação entre o aumento da violência, dos suicídios e da mortalidade, percebe que existe uma desassistência. A comunidade está abandonada”, afirma a antropóloga, que é pesquisadora no campo da etnologia indígena e professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
O estado do Amazonas liderou em suicídios, com 66 registros. Em seguida, estão Mato Grosso do Sul, com 37, e Roraima, com 19 casos.
O cientista Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), explica que o suicídio entre indígenas não está relacionado apenas a patologias diagnosticadas, como depressão, mas também a fatores socioeconômicos da população.
“A insatisfação desses adolescentes e jovens está ligada ao que ocorre ao seu redor, como conflitos territoriais, além de estigmas vindos da sociedade não indígena. Outros fatores contextuais, como os culturais, também podem influenciar esses indivíduos, tornando-os mais propensos ao suicídio”, afirma.
Tuinaki Koixaru, 35, karajá da aldeia Santa Isabel do Morro (Hawaló), na Ilha do Bananal, em Lagoa da Confusão (TO), conta que perdeu primos, sobrinhos e amigos, todos com idade entre 11 e 29 anos, vítimas de suicido.
A frequência dos casos transformou a tragédia em rotina. “Já perdi a conta de quantos parentes eu perdi. Acho que mais de 30 pessoas. O suicídio não é novo em nossa comunidade, existe há muitos anos”, ela diz.
Para a líder indígena Eliana Karajá, 54, a violência e a falta de assistência básica de saúde e de educação são a raiz do aumento dos suicídios nas comunidades.
“Esses problemas só pioram quando não há uma política pública eficaz e um compromisso real em melhorar as condições de vida nas aldeias”, diz Eliana, que é presidente da Asiva (Associação do Vale do Araguaia). “O psicólogo, por exemplo, deveria estar presente todos os dias, acompanhando os pacientes que precisam de ajuda. Infelizmente, isso não acontece.”
A Sesai, que coordena e executa a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígena e administra o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no SUS, conta com apenas 117 psicólogos. Eles são responsáveis por atender 801,8 mil pessoas, em 6.800 aldeias nos 34 DSEI (distritos sanitários especiais indígenas), em 503 municípios. Em 2023, foram 82,6 mil atendimentos psicológicos. Os dados são do Ministério da Saúde.
Para Orellana, o baixo nível de acesso aos serviços em saúde mental tem impacto fundamental na alta taxa de suicídios indígenas no Brasil. “A grande maioria dos suicidas enfrentava alguma dificuldade do ponto de vista da saúde mental e tinha algum transtorno que não foi identificado ou foi mal gerido pelo serviço de saúde”, diz o epidemiologista.
Eliana relata que, em 2021, perdeu a vontade de viver e chegou a se aproximar do mesmo destino de muitos indígenas. Segundo ela, os pensamentos negativos foram provocados por sequelas da pandemia e pelos ataques e violência constantes contra as comunidades.
“Foi um momento muito difícil, mas encontrei um psicólogo que me ajudou a superar. Ele me atendeu online, de longe, mas foi fundamental. Imagino quantas outras pessoas não têm esse tipo de suporte e acabam sucumbindo à dor.”
A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde e a Sesai para solicitar entrevista sobre o assunto, mas não obteve resposta a nenhum dos pedidos.
Há dois anos, Rossandra Cabreira, 45, indígena do povo guarani-kaiowá, perdeu o marido, vítima de suicídio. Ela diz que ele chegou a ser acompanhado por profissionais de saúde da Reserva Indígena de Dourados, em Mato Grosso do Sul, mas resistia ao tratamento.
Para seguir em frente, Rossandra, formada em licenciatura intercultural indígena pela UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), dedicou-se ainda mais aos estudos. A arte também desempenha papel importante nesse processo, segundo ela.
“Na época, comecei a fazer teatro, e foi isso que me salvou. Ajudou muito, porque eu trabalhava o dia inteiro e, à noite, estava no teatro. Era um momento de socialização com amigos e pessoas que eu estava conhecendo ali “, diz Rossandra.
A Reserva de Dourados tem cerca de 3.500 hectares, onde habitam quase 20 mil indígenas dos povos guarani-kaiowá e nhandeva, em sua maioria, e os aruak-terena. O psicólogo Walter Martins, que atende no Polo Base de Dourados – DSEI, afirma que a equipe ainda é muito pequena. Apenas dois psicólogos trabalham na reserva.
“Embora haja a necessidade de avanços na contenção do suicídio, o DSEI tem executado importantes ações no território e realizado controle epidemiológico da situação, visitando os indígenas nas residências e fazendo campanhas nas escolas”, diz o psicólogo.
ONDE ENCONTRAR AJUDA
Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do Suicídio
Oferece grupos de apoio aos enlutados e a familiares de pessoas com ideação suicida, cartilhas informativas sobre prevenção e posvenção e cursos para profissionais.
vitaalere.com.br
Abrases (Associação Brasileira dos Sobrevivente Enlutados por Suicídio)
Disponibiliza materiais informativos, como cartilhas e ebooks, e indica grupos de apoio em todas as regiões do país.
abrases.org.br
CVV (Centro de Valorização da Vida)
Presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato pelo site e telefone 188
cvv.org.br
Esta reportagem foi produzida durante o 9º Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha, que contou com o patrocínio do Laboratório Roche e do Hospital Israelita Albert Einstein.
GRAZY CAIMBÉ / Folhapress