Entre vida e morte, obra de Hayao Miyazaki reflete as crises atuais, diz cineasta

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um cervo gigante e barbudo caminha pela floresta. Flores nascem sob suas patas e, conforme ele caminha, a morte toma conta. Quem viu “Princesa Mononoke” não esquece da cena, e para o francês Léo Favier, ela sintetiza seu autor, o japonês Hayao Miyazaki. “Esse deus cervo é a vida e a morte entrelaçadas. Quando descobri o filme, aos 15 anos, foi uma revelação, eu não entendia a dualidade das coisas. Mas isso é o que define a obra de Miyazaki.”

Essa percepção culmina em “L’Esprit de la Nature”, ou o espírito da natureza, documentário de Favier que abre o Festival Animage, um dos maiores eventos do cinema de animação do país, que acontece entre terça (1º) e domingo (6) no Recife.

Após a estreia no Festival de Veneza, o longa atravessa a maioria dos filmes do diretor japonês, um dos cabeças do Studio Ghibli, e ressalta sua visão da natureza no contexto das crises climática, sem deixar de lado seus comentários sociais e possíveis contradições.

“O trabalho do Miyazaki sempre esteve ligado ao que acontecia no mundo. Isso fica óbvio em ‘Porco Rosso’, feito durante a guerra na Iugoslávia, com uma carga dramática forte em um filme que no início parecia uma comédia”, lembra Favier sobre o longa de 1992, protagonizado por um melancólico suíno que serve de alter ego ao diretor.

“Você também vê isso em ‘Princesa Mononoke’ (1997), feito após um período muito sombrio para o Japão, com o terremoto na cidade de Kobe, o ataque terrorista no metrô de Tóquio, a crise financeira asiática. Esse contexto deu origem a um filme mais violento e desesperador que os outros.”

Favier relaciona esse pessimismo na nossa atual relação com a crise climática, que nos faz questionar a relação da humanidade com o mundo. Temas que, em maior ou menor medida, conduzem a visão ambientalista de Miyazaki desde seu primeiro longa autoral, “Nausicaä do Vale do Vento”, de 1984.

Documentário tradicional, especialistas na obra do japonês, biólogos e arqueólogos conduzem a trama pela relação de Miyazaki com o animismo —uma filosofia que vê a alma de toda forma de vida— e com os traumas de guerra, que deságuam no seu paradoxal amor pelos aviões de guerra usados pelos kamikaze na Segunda Guerra —e na fabricação dos quais sua família colaborou.

Há mesmo, explicita o filme, uma linha que conecta, entre tantos temas e abordagens fantásticas, a resiliência da protagonista de “A Viagem de Chihiro” e as descobertas de “Meu Amigo Totoro” à contemplação do engenheiro de aviões em “Vidas ao Vento”, ou até à mãe de “Ponyo”, tranquila mesmo enquanto o mundo é engolido pelo oceano e suas criaturas pré-históricas.

Mas os momentos mais impressionantes são aqueles em que, conduzidos pelo narrador, somos apresentados a uma série de textos reflexivos do próprio Miyazaki que desvelam seu processo criativo. Não são materiais inéditos, mas ajudam a introduzir o que se passa na cabeça desse criador genial que, em outros tantos documentários sobre si, soa mais como gênio perturbado e obsessivo.

E ele o é, claro, considerando sua insistência nos métodos tradicionais de animação. “Para ele, fazer filmes é uma grande responsabilidade”, diz Favier, que viu, pelos olhos de Miyazaki, uma saída para este mundo. “Quando você olha o mundo objetivamente, você pode ficar tão desesperado, mas, ao mesmo tempo, quando você quer fazer algo, você é banhado por otimismo e esperança. Essa é a força motora do Miyazaki.”

Essa é apenas uma fatia da vasta programação do Animage, que tem nesta edição 133 curtas e cinco longas, entre eles o húngaro “Four Souls of Coyote”, uma aventura épica indígena também com um forte comentário sobre a emergência climática; o singelo “Boys Go to Jupiter”, com pegada pop que lembra um videogame do cotidiano; e a exibição da versão restaurada de “Akira”, de 1988, um dos maiores filmes de animação japonês.

Já as sessões de curtas, divididas tematicamente, entre obras adultas e infantis, guardam surpresas como “O Pesadelo de António Maria, de Joaquim Guerreiro”, de 1923, em comemoração aos cem anos de animações portuguesas, uma seleção de obras do alemão Andreas Hykade, uma mostra erótica, além de filmes de países africanos e de Cuba.

ANIMAGE – 14º FESTIVAL INTERNACIONAL DE ANIMAÇÃO DE PERNAMBUCO

– Quando Ter. (1º) a dom. (6)

– Onde Teatro do Parque, Cinema da Fundação Derby, Cinema da UFPE, Parque da Macaxeira e Praça da Lagoa do Araçá – Recife

– Preço Grátis

– Link: https://www.animagefestival.com

HENRIQUE ARTUNI / Folhapress

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