RAMALLAH, CISJORDÂNIA (FOLHAPRESS) – Quase um ano após lançar o mais brutal ataque contra Israel em 50 anos, o Hamas aceitou abrir mão do controle que tinha da Faixa de Gaza em favor de um governo de consenso liderado pela ANP (Autoridade Nacional Palestina).
A afirmação foi feita à reportagem por um dos 16 membros do Comitê Executivo da OLP (Organização da Liberação da Palestina), Wassel Abu Youssef. “O Hamas não é politicamente estúpido. Tudo já foi acertado nas reuniões em Moscou, em Pequim e nos encontros secretos”, disse.
Youssef não é da Fatah, a facção palestina que comanda a ANP e é centrada em Ramallah, capital da Cisjordânia. É o líder da Frente de Liberação da Palestina organização rotulada de terrorista pelos EUA no principal conselho dos palestinos.
É a primeira vez que um integrante do grupo fala abertamente sobre isso. Anonimamente, um membro do Hamas havia dito à rede saudita Al Arabiya que esse deveria ser o resultado de um encontro que está marcado para ocorrer nesta semana no Cairo, mas cuja realização é duvidosa dada a escalada do conflito entre Israel e o Hezbollah.
A reportagem não conseguiu contato com nenhum representante do grupo terrorista de Gaza, mas a indicação de Youssef, que é diretor de Organizações Populares da OLP, vai em linha com especulações de que tal acordo estaria pronto.
Uma semana antes de o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, ser morto em Teerã, em junho, o grupo e a Fatah assinaram na China acordo para a transição de governo quando a guerra acabar. “O que precisamos é nos unir. Vamos ter boas notícias em breve”, afirmou.
Youssef falou em seu escritório na sede da OLP, entidade fundada em 1964 que representa legalmente os interesses palestinos. A ANP, criada por ela 30 anos depois, é o governo formal da Cisjordânia sob os Acordos de Oslo pelos quais há reconhecimento mútuo com Israel, mas os termos nunca foram totalmente implementados.
“Oslo foi morto por Israel há muito tempo”, declarou o dirigente. “O que nos resta é pressão decisiva na arena internacional, resistir internamente e ajudar o povo.”
Em 2006, pouco depois da morte do líder Iasser Arafat (1929-2004), o sempre presente cisma palestino se fez mais forte. O Hamas ganhou a eleição parlamentar, mas o sucessor de Arafat, Mahmoud Abbas, não cedeu poder aos radicais baseados em Gaza.
Isso levou a um racha no qual o Hamas ficou com o controle de Gaza, e a ANP de Abbas, de parte da Cisjordânia. Antes do 7 de Outubro, o governo de Binyamin Netanyahu facilitou a vida do Hamas e lhe concedeu várias vantagens, buscando assim dividir os palestinos o dinheiro vindo principalmente do golfo Pérsico acabou comprando armas, e deu no que deu.
Youssef emprega a retórica usual para falar de Israel, questionando as atrocidades do Hamas e preferindo debater o que chama de “campanha genocida” do Estado judeu, não só em Gaza, mas em particular contra os moradores da Cisjordânia.
Ele considera que o papel do Irã como disseminador de influência por meio de prepostos como Hamas e Hezbollah é uma “desculpa de Israel”. Para o dirigente, quem de fato ameaça todo o Oriente Médio é Netanyahu e sua política de força.
Falas à parte, se for fato que o Hamas cedeu à realidade em solo, esmagado mas não destruído como está por um ano de guerra, esta peça se encaixa num quebra-cabeças complexo.
Fiadores de Israel, os Estados Unidos apresentaram com aliados um plano de cessar-fogo para as atuais hostilidades entre Tel Aviv e o Hezbollah que dá margem a um acerto maior.
Analistas duvidam, contudo, que um empoderado Netanyahu vá baixar o tom agora que coleciona trunfos militares sobre os rivais, como a morte dos líderes do Hamas e do grupo libanês, todos bancados pelo arquirrival Irã.
Há questões de cunho interno também. Abbas, 88, é questionado nas áreas palestinas como um líder corrupto e centralizador. Qualquer unidade entre os seus passa por fazer as pazes, antes mesmo do que com o Hamas, com Mohammed Dahlan.
Um nativo de Gaza, Dahlan comandava a segurança palestina com mão de ferro depois do estabelecimento da ANP. Foi perseguido por Abbas, que o expulsou da Cisjordânia sob acusação de ter matado Arafat em 2011.
Desde então, vive um exílio luxuoso nos Emirados Árabes Unidos e é visto como um nome que poderia comandar um governo pós-Hamas em Gaza.
A reconciliação no momento de crise tem poderosos incentivadores, Na sede da OLP no domingo (29) estava o maior empresário palestino, Munib Rachid Mansri, lendário aliado de Arafat.
Aos 90 anos, ainda é ouvido com atenção, até porque comanda negócios diversos na Cisjordânia a partir de seu palacete em Nablus, o Beit Felasteen (Casa da Palestina, em árabe). Interlocutor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de quem é fã, ele é duro com o aliado Abbas.
“Seu discurso na ONU foi ótimo, mas ele precisa fazer a lição de casa. A legitimidade do governo dele acabou há 14 anos. Ele precisa fazer novas eleições”, afirmou à reportagem. Abbas nunca cumpriu a promessa de possibilidade de alternância de poder em seus 20 anos, e voltou a fazê-la nas Nações Unidas.
Se essa conjunção astral na política palestina irá ocorrer, e se terá qualquer impacto sobre Netanyahu, é incerto. Tanto Youssef quanto Mansri compartilham o pessimismo ante a escalada militar israelense no Líbano, dizendo que o objetivo final de Tel Aviv é tomar também a Cisjordânia.
Há também aspectos da realidade. O novo líder do Hamas, Yahya Sinwar, não é visto há semanas, segundo militares de Israel, que supõem que ele esteja sozinho, cercado por reféns dos 7 de Outubro como escudos humanos.
O Hamas, ainda que vivo, parece alquebrado assim como o Hezbollah. Qual voz ativa teria em uma negociação futura, ainda mais com a rejeição a priori que terá sempre por parte de Israel, é uma incógnita.
IGOR GIELOW / Folhapress