BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um estudo da Consultoria Legislativa do Senado sobre bets apontou, ainda em março de 2023, os riscos de endividamento dos mais pobres e os efeitos negativos sobre outros setores da economia com as apostas, temas que agora causam pressão sobre o Ministério da Fazenda.
A análise foi divulgada antes mesmo da MP (medida provisória) do governo Lula (PT), que, em julho de 2023, deu pontapé inicial para regulamentação do setor, em andamento –a atividade é liberada no país desde 2018, mas tem operado sem regras e fiscalização.
O trabalho foi feito por iniciativa do próprio Núcleo de Estudos e Pesquisas, sem que houvesse provocação de algum parlamentar. O material foi divulgado nos canais usuais da Casa e chegou, entre outros, ao senador Ângelo Coronel (PSD-BA), relator da MP que iniciou a regulamentação das bets.
Procurada, a assessoria de imprensa do parlamentar ressaltou que as questões relativas à ludopatia e à lavagem de dinheiro, por exemplo, são previstas no relatório e no texto que virou lei, e avaliou que essas políticas públicas estão relacionadas a portarias da Fazenda e à fiscalização.
O documento é assinado por quatro consultores de carreira do núcleo, foi norteado por pesquisas científicas estrangeiras e adiantava dois problemas que nas últimas semanas têm causado reações no governo e no Congresso.
Em um do trechos, cita a falta de conhecimento sobre o “efeito da difusão do mercado de apostas esportivas sobre o orçamento familiar, a capacidade de poupar e o endividamento, em especial, em famílias de baixa renda”.
Também conclui que a expansão das apostas esportivas online provavelmente traria “efeitos negativos sobre outras atividades econômicas.”
Dados recentes, divulgados cerca de um ano e meio depois daquele estudo, retratam parte desses problemas. O que mais causou repercussão foi uma nota técnica do Banco Central apontado que o volume de dinheiro enviado às bets por beneficiários do Bolsa Família em agosto foi de R$ 3 bilhões.
Estudo contratado pelo setor de apostas estimou que as pessoas contempladas pelo Bolsa Família gastaram R$ 210 milhões com bets naquele mês.
Levantamento da FecomercioSP, por sua vez, indicou que 20% dos usuários de sites trocaram o pagamento de contas pelo jogo. Outros 12% substituíram a compra de comida por apostas.
O Congresso aprovou em 2018, ainda no governo Michel Temer (MDB), uma lei que liberou as bets no Brasil, a partir de uma medida provisória. O texto deveria ter sido regulamentado no máximo em quatro anos, mas nada foi feito nesse sentido durante o governo Jair Bolsonaro (PL).
Após a edição de outra medida provisória por parte do governo Lula, dessa vez para a regulamentação, o Congresso aprovou uma lei no fim do ano passado com as regras gerais para o mercado. O governo ainda editou portarias para definir outros detalhes.
A reportagem procurou o Ministério da Fazenda para saber se o estudo foi considerados na formulação da regulamentação, mas não obteve resposta. Pela regras, o mercado será totalmente legalizado a partir de janeiro de 2025.
O trabalho da consultoria do Senado identificou os problemas que hoje incomodam governo e Congresso a partir da experiência de outros lugares do mundo que já autorizaram o funcionamento das apostas esportivas.
Um estudo de 2015 realizado em Kampala, capital de Uganda, por exemplo, mostrou que 40,9% dos apostadores estavam usando dinheiro antes estava reservado a contas domésticas.
A pesquisa africana, citada no estudo do Senado, mostra que “os mais pobres gastavam proporcionalmente mais da renda pessoal com apostas do que os mais ricos, além de haver um efeito substituição de compras de bens de necessidade domiciliares e poupança em direção às apostas.”
A CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo) recorreu ao STF (Supremo Tribunal Federal) para tentar derrubar a Lei das Bets sob o argumento que ela aumentou o nível de endividamento das famílias. A entidade calcula que essas plataformas podem causar um prejuízo anual de R$ 117 bilhões aos estabelecimentos comerciais do país.
Outro exemplo citado pelo estudo do Senado é o estado de Victoria, na Austrália.
Levantamento feito pela Victorian Responsible Gambling Foundation apontou que, no biênio 2014/2015, o estado arrecadou 1,6 bilhão de dólares australianos (R$ 6 bilhões) em impostos derivados dos jogos online. Mas, por outro lado, o custo social foi de quase 7 bilhões de dólares australianos (R$ 26 bilhões).
O estudo feito pelo Senado reforçava o risco de aumento da ludopatia citando a maior dificuldade de um indivíduo se controlar em um ambiente com poucas barreiras entre a decisão de apostar e a ação efetiva. Como mostrou a Folha de S. Paulo, durante a elaboração das regras para o mercado de apostas, funcionários do alto escalão da Fazenda se reuniram 251 vezes com bets ou associações que as representavam, e só cinco com profissionais de saúde.
Com a repercussão das últimas semanas, o próprio mercado tem buscado antecipar medidas. Uma delas começou a valer na semana passada: as casas de apostas integrantes da ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loterias) não aceitam mais cartões de crédito, medida tomada também pelas principais bandeiras na terça (1). A iniciativa, de acordo com as próprias bets, tem pouco efeito prático, já que as apostas são feitas por outros meios de pagamento.
DEMÉTRIO VECCHIOLI / Folhapress