XANGAI, CHINA (FOLHAPRESS) – O músico Gilberto Gil, que fez show nesta segunda (7) para cerca de 1.500 pessoas no Centro de Arte Oriental de Xangai, na China, três dias após se apresentar também em Taiwan, afirmou que a sua própria presença era um sinal de busca de paz, numa região sob risco de conflito, como em outras pelo mundo.
“Olha, o fato de eu vir de tão longe, de uma cultura tão distinta, para buscar esse intercâmbio, essa abordagem espiritual através da linguagem musical, é sinal de que eu sou um soldado desarmado, um soldado sem armas”, respondeu ele, ao ser questionado pela reportagem.
“Não vejo, além do mais, que nesta parte da Ásia a gente possa chegar a situações mais drásticas” como em Gaza ou na Ucrânia, prosseguiu. “No caso de Taiwan e China, a língua comum, a cultura, a vida cada vez mais harmonizada diretamente nos hábitos das populações etc. As formas de consumo dos bens materiais e dos bens simbólicos são cada vez mais intercambiadas. Eu espero que aqui não entre em conflito armado.”
Para Pequim, a China continental e Taiwan são duas partes de uma só China. O risco de conflito se estende, além do Estreito de Taiwan, para aliados americanos como Filipinas e Japão, respectivamente no Mar do Sul e do Leste da China.
Gil falou duas vezes ao jornal, antes e depois do show. Antes, questionado sobre o país, sublinhou suas proporções e história. “Mais recentemente, com o desenvolvimento econômico pulsante, sua presença mundial se tornou mais nítida, intensa. E mais ainda com o avento da cultura cibernética. A China hoje rivaliza com os grandes países ocidentais e tem um papel importantíssimo no mundo.”
Após o show, foi mais específico quanto aos chineses. “Os asiáticos têm nuances variadas em relação à manifestação do entusiasmo, nos vários sentidos que a palavra tem. Os chineses são dos mais entusiastas que a gente pode encontrar, muito mais do que os japoneses, por exemplo. A China e o Japão talvez sejam os símbolos maiores da vida asiática no mundo. A China é mais alegre do que o Japão.”
Com uma banda formada por dois filhos seus e dois netos e com músicas conhecidas como “Expresso 2222” e “Aquele Abraço”, a apresentação foi nostálgica e envolvente, sem maior viés político. Falou de Gal Costa e Elis Regina e cantou músicas celebrizadas por elas. Ao final, levantou a plateia.
As canções e seu impacto foram semelhantes em Taiwan, segundo relato da pesquisadora e produtora cultural Kelly Hsieh. “E depois ele dançou”, diz ela. “Nossa, quando ele dançou, todo mundo ficou assim. Porque ele já tem 82 anos. Ainda dança muito bem, parece que tem muita energia.”
Como em Xangai, a participação da neta Flor Gil, 16 anos recém-completados, chamou a atenção. “A voz dela é linda”, diz Hsieh. Além de instrumentista e de apoiar Gil nos vocais ao longo do show, canta músicas como “Moon River” e “Choro Rosa”, esta composta por ela mesma.
Gil diz que “ela, como vários outros mais jovens da família, vêm crescendo num ambiente saturado de música, de expressividade artística, de reflexão cultural, tudo isso, e ela tem talento, uma voz muito bonita e se encaixa nesse grupo de familiares”.
Questionado sobre o significado da família, nessa turnê por sociedades confucianas que a privilegiam, respondeu que “é uma das dimensões humanas mais importantes”, sublinhando que ela “não pode ser sufocante, num mundo com liberdades individuais cada vez mais extensas”.
“Mas, em momentos críticos como agora, talvez seja fundamental o papel restaurador que a familiaridade tem”, diz Gil. “Aqueles que podem cultivar famílias relativamente coesas, em torno de valores, em torno de atitudes positivas etc. No caso nosso, a música, eu acho que é.”
Flor, que acompanha o avô desde os dez anos, diz que o giro pela Ásia, que só tem mais uma parada, na Coreia do Sul, está sendo nostálgica para ela. “Eu amo esse show, e infelizmente é a última turnê que vou fazer com o meu avô, porque ano que vem a despedida dele é durante o ano inteiro e eu não vou conseguir”, diz ela, que mora em Nova York e “tem escola”.
Gil, a neta e o restante da trupe familiar tiram dois dias, terça e quarta, para passear em Xangai. Questionado uma última vez sobre política, no caso, as eleições para prefeito no Brasil, o músico e ex-ministro da Cultura comenta que “o país ainda está muito estimulado por essa grande polaridade” entre Lula e Jair Bolsonaro.
“Mas acho que isso é da história atual da humanidade”, diz. “Os resíduos do colonialismo europeu na América do Sul e na África, os resíduos da Revolução Soviética, essas coisas estão provocando essa concentração de correntes ideológicas e de maneiras de buscar atividade política que dão nessas polaridades. Quando, na verdade, o mundo está caminhando para processos harmonizadores cada vez maiores.”
Organizado pelo Consulado-Geral do Brasil em Xangai e pela rede Latina de restaurantes brasileiros na China, o show foi apoiado por empresas como Vale, Suzano e Huawei.
NELSON DE SÁ / Folhapress