Na Flip, autoras negras buscam o universal na experiência da escravização

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – A conversa que abriu a tarde de quinta-feira no auditório principal da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, foi antes de mais nada sobre a condição humana. Mas “a condição humana tem um rosto afrodescendente”, conforme afirmou Leónora Miano, uma das escritoras que é expoente da literatura francofona e convidada da mesa.

Sob mediação de Adriana Ferreira Silva, a camaronesa vencedora do prêmio Goncourt em 2019 conversou com com a brasileira Eliana Alves Cruz, autora de “Água de Barrela”. Cruz ecoou a fala de abertura de Luiz Antonio Simas ao dizer que existe um projeto político de exclusão no Brasil, que ela chamou de projeto de solidão. “Precisamos fazer esse projeto dar errado”, disse.

Miano, que carrega o afrofuturismo em sua obra, logo tentou apontar saídas. Ela parece enxergar potencial na literatura que se propõe universal a partir do particular. “Nos meus romances, falo da condição humana”, ela diz, “mas neles essa condição humana tem um rosto afrodescendente”.

Quando Miano escreve sobre as feridas abertas da escravização, acredita estar escrevendo para todos, não só para as vítimas diretas. O mecanismo que usa para tal é se afastar da ideia de que foi um processo econômico, por exemplo, e tratar como um sequestro e, portanto, uma falta. “Pessoas conheciam a voz delas, conheciam elas. Quero falar da dor dos que ficaram.”

Há uma ligação com a obra de Cruz nessa proposta. Em “Água de Barrela”, lembra a brasileira, ela fala das famílias que se formaram e das relações não sanguíneas que se dão em consequência da diáspora. “A família estendida é uma noção muito africana”, diz. Miano parece concordar. “Fazer a escolha de se ligar a alguém, apesar de tudo, é uma forma de resistência espiritual extremamente potente, que nunca é descrita como tal.”

Cruz aproveita para alfinetar outras noções bem brasileiras, como quando se diz que alguém “tem berço”. Se alguém tem berço, ela diz, outras pessoas não têm berço. Para ela, a noção de que existem “barrigas limpas e barrigas sujas” é um exercício de virulência feito pelas palavras –”as vezes mais cruéis que a violência física”.

Como Miano, ela vê um caminho. As mesmas palavras que podem machucar, para Cruz, podem “desatar esse nó”, podem “conjurar um futuro”.

As falas das autoras foram aplaudidas com entusiasmo pela plateia. Um engasgo, porém, quando Miano disse que não se considera uma superfeminista e não vê sentido em usar o vocabulário político do mundo branco. Alguém tenta puxar palmas na plateia e ela diz que não costuma ser aplaudida quando fala desse tema. Ai, sim, o auditório fez barulho.

Miano continuou a fala se distanciando da tradição branca do feminismo europeu e afirmou que as mulheres lideraram exércitos e governos primeiros no continente africano. “Fomos as primeiras em tudo”, disse.

BÁRBARA BLUM / Folhapress

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