SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Promessa de salvação do cinema nacional e alardeada como uma prioridade do Ministério da Cultura de Margareth Menezes, a Cota de Tela ainda não deu sinais de respiro às bilheterias, quase quatro meses após ter entrado em vigor.
Nenhum longa-metragem lançado desde então deixou o platô de público no qual o país se encontra. “Os Farofeiros 2”, “Nosso Lar 2” e “Minha Irmã e Eu”, os únicos a ultrapassar 1 milhão de espectadores neste ano, são anteriores ao decreto, e blockbusters estrangeiros como “Divertida Mente 2” e “Deadpool & Wolverine” continuaram batendo recordes.
Até setembro deste ano, 235 longas nacionais passaram pelas salas de cinema, entre lançamentos, relançamentos ou exibições especiais. Eles venderam 7,6 milhões de ingressos, ou 8,2% do total. No mesmo período, 384 longas estrangeiros estiveram em cartaz, somando 84,6 milhões, ou 91,8% do público.
Uma consulta ao Sistema de Controle de Bilheteria da Ancine, a Agência Nacional do Cinema, mostra ainda que o número de filmes nacionais exibidos mês a mês permanece estável, e a porcentagem de sessões deles caiu desde janeiro.
É verdade que houve um aumento expressivo no público de longas nacionais em relação ao período de janeiro a setembro do ano passado, de 1,7% para 8,2% de todas as estreias. Mas ele foi puxado pelo trio de comédias já mencionadas. Além disso, ainda é grande sua distância para os filmes estrangeiros e para os números pré-pandêmicos 12,9% em 2019 e 15,1% em 2018.
A crise global que afeta os cinemas tem sua parcela de culpa, mas a Cota de Tela também não avança tanto quanto poderia. É o que dizem alguns produtores, diretores e distribuidores ouvidos pela reportagem, que achavam que a medida seria mais protecionista.
Afinal, é este seu objetivo, por essência. Adotada por diversos países, a reserva de uma parcela de sessões ou de dias nas salas de cinema para a exibição de filmes nacionais é antiga no Brasil. A primeira legislação sobre o assunto é dos anos 1930, mas foi só em 2001 que ela ganhou os contornos que têm hoje.
Renovada anualmente, a medida venceu em 2021 e não havia sido atualizada pelo então presidente, Jair Bolsonaro. Acabou perdida em meio à hostilidade de seu governo com a área da cultura, até Lula sancionar uma nova versão, em janeiro.
Elaborado pela Ancine, o novo texto avança ao não estabelecer uma quantidade mínima de dias de exibição para obras nacionais, como era antes, e sim de sessões. Agora, de 7,5% a 16% das exibições de todo o país devem ser de filmes produzidos aqui. A proporção varia conforme o tamanho do cinema unidades da Cinemark, por exemplo, têm um número maior a alcançar do que um estabelecimento de rua.
Um complexo com uma sala precisa exibir, anualmente, pelo menos três filmes brasileiros diferentes. Naqueles com duas salas, o número sobe para quatro, depois para cinco, até chegar em 24 títulos num cinema que tenha a partir de 16 salas só há um deste porte no país, o UCI New York City Center, no Rio de Janeiro.
Surge, então, um dos gargalos da Cota de Tela. Ela estabelece metas a serem cumpridas anualmente, e não mensalmente. Assim, os cinemas têm autonomia para distribuir seus cotistas pelo calendário da forma que quiserem, o que gera um segundo problema a tendência é que alguns poucos longas, de grandes proporções, concentrem as sessões motivadas pela medida, enquanto os independentes ficam de lado.
É o que acontece este ano com “Os Farofeiros 2”, “Nosso Lar 2” e “Minha Irmã e Eu”, trio que em janeiro já deve ter feito vários exibidores baterem suas metas, desobrigando-os a programar títulos menores em seus complexos.
“Não dá para nos fecharmos no blockbuster brasileiro. A Cota de Tela, da forma como foi aprovada, tem sua importância, mas o que vai acontecer é que ela vai ser cumprida majoritariamente com blockbusters, filmes pensados na indústria, enquanto mais de 90% da nossa produção tem perfil mais autoral”, diz Daniel Queiroz, ex-programador de cinema e diretor da Embaúba Filmes, dos premiados “A Flor do Buriti” e “No Coração do Mundo”.
Integrante da comissão técnica que elaborou as medidas da Ancine, Queiroz diz que a natureza dos filmes independentes foi levada para discussão, ainda que não tenha sido contemplada. Questionada, a agência diz que, por termos uma produção nacional de maioria esmagadora independente, as normas obrigatoriamente ajudarão a todos.
O órgão afirma ainda que pretende estudar novas medidas para melhoria do mecanismo nos próximos meses, visando “incentivos para que filmes brasileiros sejam exibidos nos horários de maior público e tratamento diferenciado para obras nacionais premiadas em festivais” ela não cita prazos, mas as normas para o próximo ano começaram a ser discutidas nesta semana.
Alex Braga, presidente do órgão, amplificou o discurso num painel da Expocine, feira de negócios que aconteceu nesta semana em São Paulo. “Olhar para grandes receitas e orçamentos não significa deixar em segundo plano os filmes menores”, afirmou, na última quarta-feira.
“A dinâmica do audiovisual, por si só, gera um ciclo positivo e um rentabilidade para todo o sistema. O que o Estado tem que fazer é trabalhar com uma lógica de portfólio. Os grandes lançamentos têm que ser celebrados, porque são eles que validam as políticas públicas.”
Essa “lógica de portfólio” pode ser observada em julho deste ano, logo após a cota vigorar, quando 52 filmes nacionais foram exibidos ao menos uma vez nos cinemas do país, totalizando 10.845 sessões. Apenas três longas, porém, foram responsáveis por 9.121 ou 84% delas ”Tô de Graça”, “Luccas e Gi em: Dinossauros” e “Bandida: A Número Um”.
Eles ocuparam, respectivamente, 460, 446 e 352 salas ao longo de seu período de exibição. Mesmo assim, nenhum dos três pode ser chamado, de fato, de sucesso de bilheteria, apesar de apelarem para a comédia de Rodrigo Sant’Anna ou para a legião de fãs do astro infantil Luccas Neto.
Se nem estrelas populares nas telinhas e na internet conseguem gerar tanta comoção nos cinemas, imagine a situação para filmes menores, com elencos desconhecidos. Queiroz conta que um longa da Embaúba, por exemplo, costuma ser lançado entre 20 e 30 salas, das 3.462 em atividade hoje. “Se deixar por conta da oferta e demanda, filmes menores nunca terão espaço”, diz.
Marcos Barros, presidente da Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex, a Abraplex, acredita que o grande problema da cinematografia nacional é o simples desinteresse do público, que seria motivado pela falta de programas de formação de plateias ou pela incapacidade de tornar o produto nacional atraente.
“A quantidade de público dos filmes nacionais não se resolve por decreto, mas sim com uma política de fomento adequada, que privilegie também o sucesso comercial dos conteúdos produzidos por meio de leis de incentivo, para além da quantidade do que se produz”, diz Barros.
“Deixamos salas vazias esperando clientes que não se interessaram pelo conteúdo oferecido, e não podemos aumentar a oferta dos filmes nos quais eles têm interesse. Não estamos pedindo para que não haja Cota de Tela, mas que tenhamos filmes brasileiros que os consumidores queiram ver.”
Iafa Britz, da Migdal Filmes, produtora de obras que vão do modesto “Casa Grande” ao milionário “Minha Mãe É uma Peça”, lembra que a produção de um filme é sempre um tiro no escuro. “Queremos fazer bons filmes, independentemente do resultado comercial, embora obviamente buscando por ele. Mas nunca sabemos quando isso vai acontecer”, diz.
Dados divulgados pela Ancine sugerem, porém, que pode haver uma relação entre oferta e interesse. De 2015 a 2019, 13,5% do público anual das salas de cinema assistiu a filmes nacionais. Já entre 2021 e 2023, quando a Cota de Tela esteve congelada, a porcentagem não superou os 5%.
“A existência da Cota de Tela tem como um de seus fundamentos o reconhecimento de que as condições de mercado do setor geram desigualdades de competição entre o conteúdo nacional e o estrangeiro, que chega ao país alavancado por grandes ganhos de escala e por investimentos massivos”, diz a Ancine, em nota.
Nas últimas duas décadas, desde que a Cota de Tela entrou em vigor, o número de estreias brasileiras saltou de 29 longas, em 2002, para 161, em 2023, cita ainda.
Mas a Cota de Tela não faz milagres, e a indústria está ciente disso. O mercado brasileiro tem hoje que enfrentar desafios que se impõem sobre o cinema mundial, como a pandemia e a concorrência vinda do streaming, somados a fragilidades internas.
Exibidores temem, por exemplo, que a lei atrapalhe na recuperação das bilheterias estrangeiras, em especial devido à cláusula que prevê multa caso um mesmo título ultrapasse 50% das sessões de um cinema numa semana. Sucessos avassaladores como o de “Divertida Mente 2”, assim, seriam freados no país.
“Impor uma limitação no tamanho do lançamento, enquanto a pirataria se propaga cada vez mais rápido nos meios digitais, é punir o exibidor, que já tem uma janela curta de arrecadação com os longas”, diz Marcos Barros, da Abraplex.
Internamente, somam-se à equação a concentração de salas de cinema nas grandes cidades e a falta de fomento público a setores além da produção.
“A Cota de Tela é uma forma de estimular a cinematografia nacional que concorre com grandes blockbusters americanos, mas será que essa é a melhor forma de promover o produto brasileiro?”, questiona Sabrina N. Wagon, da distribuidora e produtora Elo Studios, que acaba de completar 20 anos.
“Para quem reclama do protecionismo à nossa cultura, vale lembrar que todos os setores estratégicos contam com benefício e incentivo do governo. No caso do agronegócio, foram disponibilizados, entre 2022 e 2023, R$ 340 bilhões em crédito rural, por exemplo.”
Assim, membros do setor defendem que novas políticas e novas injeções de verba sejam pensadas. A Cota de Tela e a regulamentação do streaming, para onde acaba escoando a maior parte dos 161 longas lançados só no ano passado, não são o suficiente, no que parece ser um dos poucos consensos da indústria.
O problema da produção foi resolvido, mas não o da distribuição. “Cota de Tela nenhuma daria conta de contemplar um volume tão grande”, resume Daniel Queiroz, da Embaúba Filmes.
ALESSANDRA MONTERASTELLI E LEONARDO SANCHEZ / Folhapress