Navalni, opositor de Putin, deixou diário inédito antes de morrer; leia trechos

BRASÍLIA, DF, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Durante sua prisão em uma remota cadeia no Ártico, Alexei Navalni, o principal opositor do presidente russo, Vladimir Putin, manteve um diário em que registrava mensagens e pensamentos para apoiadores.

A revista americana The New Yorker publicou nesta sexta-feira (11) trechos desses diários que começam em 2022, no dia em que Navalni completou um ano preso.

Ele havia sido detido ainda no aeroporto, antes de passar pelo controle de passaporte, em janeiro de 2021. O opositor retornava de um período na Alemanha, onde se recuperou após ser envenenado, em 2020. Ele escolheu voltar à Rússia voluntariamente.

Acusado de uma série de crimes, de fraude a extremismo, Navalni morreu na prisão, no dia 16 de fevereiro deste ano, em circunstâncias não explicadas.

No primeiro dos registros publicados pela revista americana, do dia 17 de janeiro, Navalni reflete sobre sua prisão e pede que russos resistam ao que chama de “bando de mentirosos, ladrões e hipócritas”.

“A única coisa que deveríamos temer é que nós vamos deixar nossa pátria ser saqueada por uma gangue de mentirosos, ladrões e hipócritas; que desistiremos, sem lutar, voluntariamente, do nosso futuro e do futuro das nossas crianças”, escreve.

Em alguns dos registros, parte dos quais ele conseguiu fazer com que assessores publicassem nas redes sociais, Navalni conta novas sentenças que foi recebendo ao longo do tempo na cadeia. Quando morreu, ele cumpria 30 anos de pena.

“Eu estou completamente bem [após receber a nova sentença]. Até mesmo meu carcereiro disse, durante uma revista completa realmente irritante: ‘Você não me parece tão chateado'”, escreve.

“Eu estou realmente bem. Estou escrevendo isso não porque me forço a manter uma aparência de despreocupação e indiferença, mas porque meu lado ‘zen da prisão’ entrou em ação”, diz ele, referindo-se a uma preparação mental para momentos como o que estava passando.

Em outro momento, ele reflete sobre o que mais poderia fazer para o fim do autoritarismo em seu país e questiona por quanto tempo ainda ficaria preso.

“Todos os dias, reflito sobre como agir de forma mais eficaz, que conselhos construtivos dar aos meus colegas que ainda estão em liberdade, onde estão as maiores vulnerabilidades do regime. Como eu disse, ceder à ilusão sobre quando o regime vai colapsar e eu serei libertado seria a pior coisa que eu poderia fazer. E se eu não estiver livre em um ano? Ou três anos? Eu cairia em depressão? Culparia todos os outros por não se esforçarem o suficiente para me libertar? Amaldiçoaria os líderes mundiais e a opinião pública por terem me esquecido?”, escreve Navalni.

O opositor também escreveu sobre a Guerra da Ucrânia. Em um trecho com data de 22 de março de 2022, um mês depois do início da invasão russa contra o vizinho, Navalni refletiu sobre o pior que poderia acontecer com ele próprio em uma tentativa de aceitar suas circunstâncias.

“Tenho 45 anos de idade. Tenho família e filhos. Tive uma vida para viver, trabalhei com coisas interessantes, fiz algumas coisas úteis. Mas há uma guerra acontecendo. Imagine que um rapaz de 19 anos está dentro de um blindado, um estilhaço explode na cabeça dele, e pronto. Ele não teve família, nem crianças, nem vida”, escreveu Navalni.

“Agora mesmo, civis mortos estão nas ruas de Mariupol, seus corpos sendo devorados por cães, e muitos terão sorte se chegarem a ser enterrados. Eu fiz minhas escolhas, mas essas pessoas estavam apenas vivendo as próprias vidas, até que um dia um imbecil vingativo aparece na televisão, o presidente do país vizinho, dizendo que vocês são todos nazistas e devem morrer. No dia seguinte, uma bomba entra pela sua janela e você não tem mais esposa, marido ou crianças.”

Apesar das condições da prisão de Navalni, localizada na remota região de Yamalo-Nenets, acima do círculo polar ártico, alguns dos escritos são bem-humorados, e tiram sarro da situação —como quando, em abril de 2022, o líder opositor escreveu sobre uma das atividades mais comuns dos prisioneiros: limpar a neve da prisão com pás.

“Todos nós usamos roupas que parecem ter saído de um filme sobre o gulag. Os casacos pesados, chapéus de pele, luvas, as enormes pás de madeira, tão pesadas que parecem feitas de ferro fundido, principalmente depois que ficam molhadas e a água congela. São as mesmíssimas pás usadas pelos soldados que limpavam as ruas da minha cidade natal quando eu era criança. Era de se esperar que, nos trinta anos que se passaram desde então, a tecnologia teria evoluído para produzir pás mais leves, mas na Rússia, como em tantas outras coisas, não pegamos o jeito”, escreveu.

“Um dia nos trouxeram algumas pás ultraleves que quebraram imediatamente. A reação foi ‘bem, que seja, vamos usar as de madeira. Usamos elas por todo esse tempo, elas são confiáveis’. Como se disséssemos: nossos antepassados inventaram essas pás, e longe de nós duvidar da sabedoria deles ao tentar melhorar algo que já é ideal”.

O último registro publicado pela New Yorker é de 17 de fevereiro de 2024, cerca de um mês antes da morte de Navalni. Nesse dia, o opositor tenta responder a pergunta que afirma ser a mais frequente feita a ele por outros prisioneiros e pelos guardas: por que voltar voluntariamente à Rússia depois do tratamento na Alemanha?

Navalni explica que suas razões foram simples: ele não queria abandonar seu país. “Eu participei de eleições e tentei chegar a cargos de liderança. Eu viajei pelo país e disse a todos que quisessem ouvir: ‘Prometo não decepcionar vocês, não vou enganá-los, não vou abandoná-los’. Ao voltar para a Rússia, cumpri minha promessa para meus eleitores.”

“Não vou abandonar minhas ideias nem minha pátria. Minhas convicções são são radicais. Alternância de poder. Eleições livres. Um Judiciário justo. O fim da censura. O estado putinista não é sustentável, e um dia, quando nos virarmos para olhar, ele terá desaparecido. A vitória é inevitável.”

“Mas, por enquanto, não podemos desistir, e precisamos defender nossos princípios.”

GUILHERME BOTACINI E VICTOR LACOMBE / Folhapress

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