Satyajit Ray, na Mostra de SP, fez obras-primas para além do realismo

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Cineasta de maior prestígio das Índias ao lado de Guru Dutt, Mrinal Sen e Ritwik Ghatak, herdeiro espiritual do grande escritor e músico bengali Rabindranath Tagore (1861-1941), Satyajit Ray, também de etnia bengali, recebe na 48ª Mostra Internacional de São Paulo uma retrospectiva com sete de seus longas, de 1955 a 1966, além da arte do cartaz.

Todo cinéfilo que se preze conhece ou deseja conhecer a famosa “Trilogia de Apu”, composta pelos longas “A Canção da Estrada”, de 1955, “O Invencível”, de 1956, e “O Mundo de Apu”, de 1959, respectivamente o primeiro, o segundo e o quinto de sua carreira.

São filmes comumente associados ao neorrealismo italiano, principalmente porque Ray sempre declarou ter se encantado, na juventude, com “Ladrões de Bicicleta”, 1948, de Vittorio De Sica. Mas seria reduzir o seu cinema a uma fórmula, a do pós-guerra, e a um fantasma, o de Cesare Zavattini, principal mentor do neorrealismo.

As fontes nas quais Ray se nutriu foram outras: o realismo de John Ford, as composições visuais de F.W. Murnau, os movimentos de câmera de Murnau, Jean Renoir e Kenji Mizoguchi, além da veia documental de Robert Flaherty. Todas essas referências, e há outras, variam de incidência e intensidade de filme a filme.

Porque eis um cineasta que soube se modificar, adotando a velha fórmula hollywoodiana de fazer um filme contra o outro, movendo-se por diferentes gêneros e tipos de registros, do mais ao menos documental, do realista ao expressionista, do onírico ao maneirista.

A seleção que a Mostra irá exibir permite o entendimento de um percurso de 12 anos, em que podemos detectar duas fases específicas. A primeira vai de “A Canção da Estrada”, seu primeiro longa, ao impactante “A Grande Cidade”, de 1963. São filmes mais realistas, com um forte aspecto de crítica social.

Na “Trilogia de Apu”, acompanhamos várias etapas da vida de Apu, da infância à idade adulta, de filho travesso a pai ausente, em três filmes que mostram a habilidade do diretor no uso de elipses. Vemos o tempo passando de forma inventiva, sem muito didatismo, mas sem alienar o espectador da vida do protagonista.

O terceiro, “O Mundo de Apu”, é o mais tortuoso, mas talvez por isso mesmo seja o melhor. No conjunto de altos e baixos, os altos podem levar o cinéfilo mais sensível às lágrimas, menos pelas artimanhas do melodrama do que pela excelência da forma.

“A Grande Cidade” talvez seja o filme em que o realismo social encontra um classicismo brilhantemente moldado na história de uma mulher de Calcutá que consegue um emprego de vendedora, no qual se destaca, e aos poucos se torna a principal provedora do lar onde moram outros parentes, incluindo seu sogro, conturbando um pouco mais a hierarquia patriarcal da família.

Novamente, vemos a capacidade do cineasta de dosar os momentos mais sentimentais para construir um melodrama social de incrível força poética, uma poderosa crítica aos alicerces machistas da sociedade bengali e, por consequência, de toda a Índia.

Com sua obra-prima, “A Esposa Solitária”, de 1964, muito conhecido pelo nome original, “Charulata”, uma nova fase se inicia, mais antenada com os movimentos de cinema moderno dos anos 1960, principalmente a nouvelle vague e, dentro dela, os filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut. A crítica social, contudo, ainda aparece com força.

Nesse filme sem igual, adaptação de uma obra de Rabindranath Tagore, a esposa do título desenvolve uma ambição artística quando o primo de seu marido a incentiva a escrever. Vemos suas dúvidas, seus desejos íntimos e o momento de inspiração, em imagens que jamais são esquecidas.

A criatividade de Ray transborda na sequência do balanço, que remete a “The Brat”, 1931, e “Um Dia no Campo”, 1936, filmes anteriores de Ford e Renoir, respectivamente. Há ainda um final que fica conosco por muito tempo após a projeção, em que vemos o recurso das imagens congeladas usado de modo extremamente preciso.

A partir desta maravilha cinematográfica, os filmes de Ray se tornam mais flagrantemente modernos, ou menos clássicos, embora não necessariamente melhores. Têm, com alguma frequência, temáticas artísticas, alternando a estranheza de “O Covarde”, de 1965, com a fábula sobre o estrelato e suas armadilhas em “O Herói”, de 1966. São os dois filmes que completam a retrospectiva.

Faltam dois longas essenciais para entendermos o que dessa segunda fase já se antecipava na primeira: “A Sala de Música”, de 1958, um dos dois longas que Ray realizou antes de terminar a trilogia em 1959, e o mizoguchiano “A Deusa”, de 1960, crítica feroz e mal compreendida ao fanatismo religioso.

De todo modo e mesmo com uma filmografia sem falhas, é de 1955 a 1966 que encontramos o melhor do diretor, salvo um ou outro longa posterior como “Os Jogadores do Fracasso”, de 1977, já exibido em uma edição anterior da Mostra, e “A Casa e o Mundo”, de 1984, uma nova adaptação de Tagore.

SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress

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