Cronenberg, na Mostra de SP, contempla a morte e celebra nova fase do ‘body horror’

CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Nos primeiros minutos de “O Senhor dos Mortos”, o personagem de Vincent Cassel encara, concentrado, uma tela acoplada a uma lápide de pedra. Nela, acompanha diariamente o apodrecimento dos restos mortais de sua mulher. Da mesma forma, para David Cronenberg, fazer o filme foi como contemplar a perda da mulher, Carolyn Zeifman, há sete anos.

No que chama de o projeto mais pessoal de sua carreira, ele enfrenta a morte dela e a sua própria, de certa forma. Aos 81 anos, o diretor de “A Mosca” e “Videodrome” diz estar em paz com a finitude da vida, e não se preocupar com o legado que eventualmente deixará —ele é pai do “body horror”, da arte pela violação do corpo humano, afinal.

“Eu não tenho controle sobre isso”, afirmou ele no último Festival de Cannes, onde “O Senhor dos Mortos” não foi recebido com o calor que se esperava. Mas este é um filme gélido, soturno como seu criador, e, portanto, nem por isso perdeu força ao aterrissar no Brasil.

Cronenberg é um dos principais destaques da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, maior evento cinematográfico do país, que começa nesta quarta-feira (16) na Sala São Paulo, com a exibição para convidados de “Maria Callas”, biografia da diva da ópera dirigida por Pablo Larraín.

São 417 filmes de 82 países, exibidos até o dia 30 de outubro em diversas salas de cinema e espaços culturais de São Paulo, bem como em pontos icônicos da capital, caso do Museu da Língua Portuguesa e do Vale do Anhangabaú.

Além de Cronenberg, estão escalados nomes como Sean Baker —vencedor da Palma de Ouro, por “Anora”—, Christophe Honoré, Jia Zhang-ke, Miguel Gomes, Maura Delpero, Asif Kapadia, Tsai Ming-liang, Hong Sang-soo, Radu Jude, Leos Carax, Alonso Ruizpalacios, Alain Guiraudie, Lav Diaz, Jason Reitman, Amos Gitai e Ruth Beckermann. E, pela primeira vez, as crianças terão uma programação especial na Mostrinha.

Com sessões nos dias 18, 23, 26 e 27 deste mês, “O Senhor dos Mortos” acompanha Vincent Cassel, que em cena parece compartilhar aparência, trejeitos e guarda-roupa com Cronenberg. Seu personagem, após perder a mulher, fica obcecado em monitorar seu cadáver.

Ele o faz por meio de uma tecnologia que instala, nos túmulos do opulento cemitério do qual é proprietário, câmeras conectadas a um aplicativo para celular. Quando o cemitério é profanado, porém, Karsh descobre uma conspiração contra os mortos que estão sob sua vigília.

“Para mim, enquanto artista, tudo é sempre pessoal, porque eu crio e consumo a partir das minhas experiências”, afirmou o canadense em Cannes. A simpatia contrastava com o sobretudo e os óculos escuros negros, que o transformavam numa figura vampírica em plena Riviera Francesa.

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Pergunta – Quão pessoal ‘O Senhor dos Mortos’ é para o senhor?

David Cronenberg – Para mim, enquanto artista, tudo é sempre pessoal, porque eu crio e consumo a partir das minhas experiências. Mas de fato há diálogos inteiros neste filme que têm um paralelo direto com passagens da minha vida. Eu o escrevi enquanto criava versões fictícias de eventos reais. Não seria um equívoco considerá-lo uma autobiografia, de certa forma.

P. – Então o personagem do Vincent Cassel seria um alter ego? Ele até se parece fisicamente com o senhor.

D. C. – Tudo começou com uma coincidência, porque eu claramente sou mais bonito do que ele [risos]. Nós, na verdade, não somos parecidos, só o penteado, por acaso, estava igual [como Cronenberg, o personagem tem cabelo grisalho puxado para trás]. Foi uma conexão estranha e bem-vinda. E aí ele tentou me imitar um pouco na forma de falar. O Vincent fala de forma rápida e enérgica, enquanto eu falo de forma lenta e indiferente. Mas o laboratório parou por aí.

P. – O senhor queria, com este filme, lembrar o espectador de que não se vive para sempre?

D. C. – Discutir a nossa condição enquanto seres humanos é objeto do cinema, da arte como um todo. No meu caso, eu não acredito num pós-vida, então procurar um sentido —ou a falta de sentido— na vida sempre foi tema das minhas tramas. E eu faço isso com humor, porque é o mecanismo que temos para lidar com coisas horríveis, é o que nos leva adiante.

P. – O que te fez se interessar tanto pelo corpo humano?

D. C. – Para mim é algo óbvio. Se você é cineasta, qual é o seu principal objeto de trabalho? O ser humano —o rosto, o corpo, a voz. Então é claro que eu deveria ser obcecado por isso. E se você é um existencialista ateu como eu, sua vida é o seu corpo. Quando o corpo morre, pronto, acabou.

P. – O senhor pensa muito nisso?

D. C. – Eu acredito que pensar na morte e aceitá-la é uma tarefa filosófica para todos.

P. – E legado, é algo em que pensa, sendo o pai de todo um subgênero?

D. C. – O curioso é que eu nunca usei a expressão “body horror”. Um jornalista inventou isso. Eu simplesmente não vejo os meus filmes como horror corporal, porque eu acho que o nosso corpo é maravilhoso, mesmo as entranhas. Não é algo horrível.

P. – Mas é um termo que vingou, principalmente agora que o ‘body horror’ vem sendo ressignificado por uma nova geração, com Julia Ducournau e Coralie Fargeat.

D. C. – Eu não penso sobre legado. Quer dizer, eu não tenho controle sobre isso. Mas acho interessante que cineastas mais jovens como elas estejam dizendo que eu sou uma influência. Me agrada muito, claro, ver que alguém se sentiu criativamente encorajado pelo meu trabalho. É adorável, mas não é algo com que me preocupo. É uma coisa que simplesmente acontece, e sobre a qual eu não tenho controle. Quando eu morrer, meu legado se perderá de mim.

P. – O que quer dizer?

Bem, que ele vai ganhar vida própria.

P. – Falar sobre luto ou fazer cinema é como uma terapia?

D. C. – Não, eu não penso em arte como uma forma de terapia. São coisas muito diferentes. As pessoas se esquecem que fazer cinema é algo muito infantil. Você tem atores que fingem ser outras pessoas, enquanto você tira fotos deles. É como uma brincadeira de criança.

P. – Mas esse filme, o senhor vem dizendo, foi uma maneira de lidar com a morte da sua mulher.

D. C. – Imagine que a mulher com quem você foi casado por 43 anos de repente morre. Então, você percebe que fazer um filme como este não atenua o sentimento de luto. Por outro lado, é uma maneira de recordar o que viveu com ela, de conversar com alguém sobre isso. No fundo, você precisa sofrer, porque sofrer mostra que aquilo tudo foi real. Eu não acredito que vou ver minha mulher no paraíso, que tudo vai ser lindo, do jeito que era antes. Eu não acredito nisso. Ela se foi, eu a perdi, e é isso. A vida é assim, e ela precisa seguir.

P. – E o que pensa de tecnologia, que costuma contrapor à parte orgânica de seu trabalho? Em especial da inteligência artificial, presente neste filme?

D. C. – O estranho é que escrevi este filme há cinco anos. A inteligência artificial existia, mas não era o assunto do momento. Para mim, ela é uma evolução natural, como qualquer outra tecnologia. Cinematograficamente, ela pode ser uma ferramenta maravilhosa, mas como tudo o que inventamos, como a energia nuclear, há partes que são um desastre e partes que são fantásticas. É como eu sempre digo, a tecnologia é uma extensão de nós, do nosso corpo, do falar, ouvir, sentir. Eu acredito que ela fará coisas lindas, maravilhosas, mas também horrorosas. É inevitável.

48ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

– Quando Entre 16 e 30 de outubro. ‘O Senhor dos Mortos’ será exibido em 18/10, às 19h20, na Cinemateca; 23/10, às 20h50, e 26/10, às 17h, no Reserva Cultural; 27/10, às 18h, no Kinoplex Itaim

– Link: https://48.mostra.org/

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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