SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ministro Kassio Nunes Marques, do STF (Supremo Tribunal Federal), tentará obter algo que ex-presidentes da República, ex-governadores de estado, empresários, lobistas e banqueiros não conseguiram: fazer J&F e Paper Excellence se entenderem na negociação de compra e venda da Eldorado Celulose.
Desde que as divergências entre elas começaram em 2018, quase um ano após ser acertado o contrato, já aconteceram diversas tendências de acordo no Brasil e no exterior. Envolveram proprietários, emissários e advogados. Nunca deu certo.
Ao negar recurso pedido pela Paper que liberaria a transferência de 50,59% das ações da Eldorado que estão com a J&F, Nunes Marques designou uma audiência de conciliação para 18 de novembro, às 17h.
J&F e Paper não se pronunciaram sobre a decisão do STF ou a possibilidade de conciliação.
O assunto acendeu o alerta em outras companhias multinacionais que estão no país. A disputa também versa em um tema que lhes é fundamental: a posse de terras por estrangeiros. A reportagem apurou que algumas delas desejam ter representantes na audiência e, se possível, se registrarem como interessadas para terem a palavra.
A J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, aceitou vender a Eldorado para a Paper, companhia do indonésio Jackson Wijaya, por R$ 15 bilhões, em setembro de 2017. Meses depois, o comprador entrou na Justiça por alegar que o vendedor não colaborava para a liberação das garantias, o que concluiria o negócio. Foi o pontapé inicial na ramificação de processos, arbitragens, inquéritos criminais e outras disputas que ainda seguem pelos sete anos seguintes. E sem perspectiva de fim.
Desde então aconteceram outras tentativas de conciliação. A primeira em agosto de 2018, nos Estados Unidos, quando a Paper, sob a justificativa de que a J&F dificultava a liberação de garantias que concluiria a venda, entrou na Justiça para alongar o prazo. As versões sobre o que aconteceu divergem entre as duas partes, como em tudo referente a este caso.
A Paper afirma que a a família Batista pediu R$ 6 bilhões a mais para encerrar a briga. A J&F diz que a empresa ofereceu mais 30 dias, sem custo, para a rival conseguir resolver a questão das garantias.
Em fevereiro de 2021, Wesley e o diretor jurídico da J&F, Francisco de Assis, se encontraram com Claudio Cotrim, diretor-presidente da Paper no Brasil, e o advogado Eduardo Damião, do escritório Mattos Filho. A holding dos Batista afirma ter feito uma proposta que considerou razoável: receber o que a companhia indonésia ainda tinha a pagar, corrigido, e entregar o controle da Eldorado. A condição seria encerrar todas as brigas paralelas.
A Paper diz que Wesley se referiu a isso como “passar a régua” e não aceitou. A empresa havia acabado de vencer a arbitragem por 3 a 0 e esta começaria a fazer o cálculo de quanto a J&F teria a pagar como indenização pela contenda.
Essas brigas paralelas levariam a disputa a outro patamar, com ações por anulação da arbitragem, recursos no STJ (Superior Tribunal de Justiça), no STF e ações populares no que se tornaria a maior ameaça às pretensões da Paper: a questão das terras nas mãos de estrangeiros.
Houve também conversas entre advogados, atuações de emissários do espectro político e econômico e reuniões entre os donos. Joesley Batista e Jackson Wijaya se encontraram em Frankfurt, em novembro do ano passado, por sugestão da arbitragem. Não houve acordo.
As empresas divergem até mesmo no escopo da audiência marcada pelo STF. Para a Paper, é uma tentativa de conciliação na questão das terras, justamente o que se refere a decisão de Nunes Marques. A J&F não vê sentido em falar sobre o assunto e enxerga ser possível um acordo se englobar o aspecto geral da disputa.
Quem acompanha o caso diz não ser difícil prever o que vai acontecer se a discussão se limitar às terras.
A Paper deve dizer que comprou um complexo industrial, uma fábrica de celulose e que está disposto a vender imediatamente as terras que sejam da Eldorado, que representaria 0,6% dos R$ 15 bilhões do acordo de compra e venda (R$ 90 milhões).
A J&F deve rebater que isso pouco importa porque a Paper teria descumprido a lei 5.709/1971, chamada de Lei das Terras, que a obrigaria a buscar autorização do Incra e do Congresso para ser dona de imóveis rurais. Também teria desrespeitado o contrato de compra e venda. No documento, a empresa indonésia se declara apta a assumir imediatamente o comando da Eldorado. O que holding dos Batista considera ser falso.
“A forma como o STF conduzirá o caso Eldorado será um precedente importante para outros negócios envolvendo multinacionais. Esse litígio é acompanhado por empresários e investidores de todo o Brasil, e de diversas áreas, já que, dependendo do resultado, poderá impactar não só a segurança jurídica, mas também a previsibilidade do ambiente de negócios no país. Poderá, também, ter repercussões importantes em negócios jurídicos celebrados por outras empresas”, afirma Marco Aurélio de Carvalho, fundador do grupo Prerrogativas, coletivo formado principalmente por advogados brasileiros. Ele é consultor da Paper no caso.
“A lei estabelece a nulidade de pleno direito do negócio [a venda da Eldorado] e prevê as consequências em detalhe: o vendedor deverá restituir o valor que recebeu do comprador, ou as ‘quantias recebidas a este título, como parte do pagamento’. Por isso, as partes só poderão negociar dentro desse limite. Mesmo se as partes quisessem manter o negócio, o que não parece ser o caso, teriam que assinar um novo contrato, mas antes disso deverão obter as autorizações prévias”, rebate a advogada Tatiana Bonatti Peres, especializada em agronegócio e operações societárias e imobiliárias.
A Paper entrou com recurso no STF contra liminar concedida pelo desembargador Rogério Favreto, do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Santa Catarina). Ele proibiu a transferência das ações que estão com a J&F até o julgamento de ação popular proposta pelo ex-prefeito de Chapecó, Luciano José Buligon. O político pede o cancelamento da venda da Eldorado à Paper por ferir a soberania nacional.
Em sua decisão, Nunes Marques criticou a Paper, que tentou desistir do recurso. A empresa apresentou dois deles sobre o mesmo assunto, no mesmo dia, em horários diferentes. Quando o ministro Edson Fachin, se declarou impedido de analisar o caso e este foi para Nunes Marques, a companhia apresentou pedido para não ir adiante.
Para o ministro do Supremo, a Paper tentou escolher o magistrado encarregado da análise. “Embora a desistência das ações seja faculdade outorgada aos litigantes, não pode servir de escudo para a prática de atos configuradores de má-fé processual”, escreveu.
A Paper alega que, antes do despacho de Favreto, já havia entendimento do STF de que negócios jurídicos afetados por essa discussão não poderiam ser suspensos até que fosse decidida pelo Supremo a ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) 342, iniciada em 2015 pela Sociedade Rural Brasileira. O caso discute se a Constituição mudou ou não o entendimento da lei 5.709/1971, que disciplina a aquisição de imóvel rural por estrangeiros.
A polêmica é se houve ou não, pela Carta Magna, liberação para que empresas brasileiras que tenham capital majoritariamente internacional possam comprar terras. Se a legislação de 1971 valer, seria necessária autorização do Congresso Nacional. O Incra deu parecer para que isso não aconteça, mas limitado apenas ao caso Eldorado. Ignorou os demais.
“A não concretização da venda da Eldorado sob o argumento da falta de autorização do Incra e do Congresso é preocupante e poderá colocar dúvida em outras transações já consolidadas de setores diversos, bem como afastar os tão almejados investimentos estrangeiros no país. Este é o risco: o recado que passaremos ao mundo”, completa Marco Aurélio de Carvalho.
“Creio que tudo continua como está e não há nada a ser conciliado também [no caso Eldorado]. Por isso, eu acho que as consequências dessa conciliação são bem limitadas. A lei trata de normas de ordem pública [não particulares] e não há muito espaço para as partes negociarem”, opina Fernando Kuyven, advogado especializado em direito societário e empresarial e árbitro.
ALEX SABINO / Folhapress