Estelionato sentimental: golpe que usa a paixão para conseguir vantagem financeira avança no Brasil

A expectativa é que, em 2024, o termo seja citado em 100 casos da Justiça brasileira

Estelionato sentimental: golpe que usa a paixão para conseguir vantagem financeira avança no Brasil | Ilustração: Freepik

Afeto exagerado e precoce seguido de vitimismo e pedidos de empréstimos financeiros. Esse é o modus operandi de criminosos que praticam o estelionato sentimental, uma modalidade de golpe financeiro em que quatro a cada dez mulheres no Brasil são vítimas, de acordo com a iniciativa Era Golpe, Não Amor.

A modalidade não está tipificada na legislação brasileira, e por isso se encaixa no crime de estelionato, crime contra o patrimônio previsto no Código Penal Brasileiro, no artigo 171, com pena de reclusão de um a cinco anos e multa. O estelionato acontece quando alguém engana outra pessoa para obter uma vantagem econômica indevida, prejudicando a vítima.

A diferença do estelionato sentimental é que o criminoso engana através da manipulação sentimental, segundo Luciana Morillas, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP. “O estelionatário manipula os sentimentos da vítima, simulando um relacionamento amoroso ou afetivo para, posteriormente, pedir dinheiro, favores, ou outros recursos”, diz a professora.

O termo estelionato sentimental foi citado em 46 decisões proferidas pelo Judiciário em 2021. No ano seguinte, esse número quase dobrou, saltando para 85. A expectativa é de que em 2024 a Justiça brasileira atinja a marca de 100 casos citando o termo, como aponta pesquisa feita pelo escritório de advocacia Trench Rossi Watanabe, baseada nos dados da plataforma Inspira, que através de métodos estatísticos analisa dados jurídicos.

Um dos principais sinais do golpe é o excesso de declarações amorosas precoces, comportamento chamado de love-bombing, em tradução livre bombardeio de amor, explica Diogo Okasawara, psicólogo clínico e mestrando em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. “Essa manipulação acontece quando uma pessoa que acaba de te conhecer diz que você é o amor da vida dela, faz juras e promessas de amor eterno. Esse é um sinal que não corresponde à história da relação e que pode ser usado como munição.”

Em seguida do afeto desmedido, o golpista começa a se vitimizar. A estratégia é apelar para a paixão para baixar a guarda da vítima e começar os pedidos de dinheiro. “O golpista cria histórias convincentes de dificuldades financeiras, emergências ou negócios urgentes para justificar os pedidos de ajuda”, diz a professora Luciana.

Okasawara comenta que para o criminoso aplicar uma estratégia convincente há uma pesquisa antecipada sobre a vítima nas redes sociais, para descobrir gostos pessoais e também sinais de bens financeiros. “O praticante investiga os desejos da vítima para criar um personagem que vá de encontro com aquilo que a pessoa está procurando na rede social. Isso geralmente envolve a invenção de um cargo de autoridade que passe certa credibilidade para facilitar um movimento de sedução e para aumentar os efeitos dos ataques que vêm em seguida.”

A análise prévia do alvo acontece nas redes sociais porque é na internet que o golpe comumente é aplicado. Em aplicativos de relacionamento surgem casos famosos, como o do Golpista do Tinder. Na situação, relatada em um documentário lançado em 2022, um homem enganou três mulheres que conheceu através do aplicativo. O golpista se apresentava como Simon Leviev, filho de um famoso milionário que fez fortuna com venda de diamantes. Uma das vítimas transferiu US$ 200 mil, mais de R$ 1 milhão ao criminoso. “Como não há regulação das redes sociais, a falsificação de identidade é muito simples. Além disso, o alcance global dos aplicativos aumenta as chances de golpistas encontrarem pessoas vulneráveis e eles disparam mensagens para várias pessoas ao mesmo tempo, potencializando as chances de encontrarem essas pessoas”, diz Luciana.

Para a professora, as mulheres são as principais vítimas do estelionato sentimental porque são pressionadas socialmente para terem um parceiro, o que as deixa vulneráveis e expostas a homens mal intencionados. Uma pesquisa de 2021 feita em países europeus pelo aplicativo de namoro Bumble, em parceria com YouGov, concluiu que 74% das pessoas acreditam que, quando se trata de relacionamentos amorosos, existem diferentes expectativas com base na idade e na identidade de gênero da pessoa. A pesquisa ainda aponta que 33% das mulheres mudaram seu comportamento para fazer o homem se sentir mais poderoso ou confortável em um relacionamento.

“Nós vivemos em uma sociedade em que as mulheres são muito pressionadas para estarem em um relacionamento, muitas delas acabam baixando a guarda e aceitam relacionamentos para não serem julgadas como menos aptas para se adequarem a um padrão social.”

Como a artimanha desse tipo de estelionato é a manipulação sentimental, as consequências dessa modalidade vão além da perda significativa de bens financeiros, e envolvem o desenvolvimento de sentimentos intensos de culpa, vergonha ou medo, explica Okasawara. “Também envolve a perda de confiança nos outros, o isolamento e até ideações suicidas. Uma das consequências mais graves é que a vítima comumente não conta o que passou para parentes ou amigos próximos, ou quando elas decidem e conseguem contar, não são acolhidas.”

O psicólogo clínico diz que o fundamental para ajudar quem passou por esse tipo de situação é uma rede de apoio que ofereça espaços de escuta e de acolhimento, driblando o desejo de solidão causado pelo golpe, e sugira a busca por apoio profissional.

Além das recomendações de como lidar com o trauma causado pelo crime, a professora Luciana destaca que há medidas que ajudam a evitar que o golpe aconteça. Uma delas é a autenticação de perfil. Confirmar a identidade do perfil com quem está conversando, buscar contatos em comum que o conheçam e pesquisar o nome em buscadores on-line são imprescindíveis. Luciana finaliza recomendando: “Peça o endereço real da pessoa e mande entregar alguma coisa para ter certeza de que ela mora lá. Isso vai ser extremamente importante caso você precise encontrar a pessoa para um processo porque a impunidade nesses casos acontece por ser praticamente impossível chegar até o estelionatário”.

**Por Jornal da USP 

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