SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Todos os dias, quatro mulheres, em média, são mortas de forma violenta no Brasil, segundo relatório mais recente da ONU, de 2023. O país ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídio, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia. Apesar de os dados não serem novidade, são poucos os casos que causam comoção nacional.
Regina Jardim tinha 47 anos quando perdeu a filha mais velha, Priscilla, morta pelo ex-namorado com cinco tiros. Foi só então que descobriu o quão comum é esse tipo de crime no Brasil. Apavorada com essa realidade, sobre a qual pouco se falava em 2007, criou o projeto “Quem Ama, Liberta”, um memorial com fotos e breves histórias de todas as vítimas de feminicídio que ela consegue encontrar. Em 17 anos de trabalho, já relatou os casos de mais de 20 mil mulheres.
Recentemente, ela postou as histórias de Gabriela, 30, encontrada sem roupas dentro de um tonel; Regina, 52, morta pelo filho; Marinez, 43, morta pelo companheiro com 20 facadas; Cristiane, 34, morta pelo marido, candidato a vereador; Kelly, 36, morta pelo ex-companheiro contra quem já tinha medida protetiva; Laiz, de 22, morta pelo ex-marido com arma de fogo, e Estefânia, de 21, morta por asfixia pelo ex-namorado.
“Os números todo mundo sabe. Mas as pessoas só levam um choque quando veem os rostos”, diz Regina. Ex-professora de literatura em Cruzeiro, no interior paulista, ela hoje tem 64 anos e está aposentada.
Minha filha foi morta no dia 9 de junho de 2007, era feriado de Corpus Christi. Ela tinha 29 anos, era a mais velha dos meus cinco filhos.
Ela teve um noivo por nove anos e rompeu. Passou uns meses solteira e depois disse que estava namorando. Quando eu soube quem era, não gostei muito. Eu o conhecia, ele tinha sido meu aluno no ensino médio. O nome dele é Alexandre Bittencourt de Oliveira e Souza. Não gostava do perfil dele. Com 17 anos, ia para a escola de carro. Não se entrosava bem com os colegas. Mas a resposta que ela me deu foi que ele era “tão bonzinho, mãe”.
Eles namoraram por uns dois meses, apenas. Ela ficou de levá-lo em casa, mas não houve tempo. No feriado, ela me ligou dizendo que vinha almoçar comigo no sábado. Foi a última vez que nos falamos. Às quatro da manhã, acordei com o telefone. Era um amigo dela chorando, dizendo que o Alexandre tinha feito “uma coisa horrível”. Quando chegamos à danceteria, disseram que minha filha estava morta, que ele tinha atirado na cabeça dela. Eu não consegui descer do carro, só gritava.
Depois, soube que ela tinha chegado com duas amigas. Quando ela o viu, decidiu ir embora. Ele a rendeu no estacionamento, apontou a arma e a obrigou a entrar no carro dele. Ela se negou. Ele deu um tiro no estômago dela e quatro na cabeça. E fugiu.
Também fiquei sabendo que, quando ele apontou a arma para ela, ela pediu por mim. O psicólogo me falou que ninguém imagina que a filha vai sair para dançar e não vai mais voltar. Mas a gente que é mãe sente de não ter podido estar lá.
Ele se entregou no dia seguinte, com o melhor advogado criminalista da região, que era marido da delegada da Mulher, o que é um grande conflito de interesse. Isso me fez fazer várias passeatas, até o criminalista deixar o caso. Na época, a cidade inteira me apoiou. As pessoas me ligavam e falavam que era só eu dar meu sim’ para acabarem com ele. Eu falava que não. Quem morre não paga. Ele era um filhinho de papai, acostumado à vida boa, eu queria vê-lo preso.
Ele não pegou a lei do feminicídio, que é de 2015. Foi condenado por homicídio, pegou 18 anos e foi parar no [presídio de] Tremembé. Hoje ele está livre, é casado e tem dois filhos.
Eu tinha uma carreira brilhante como professora de língua portuguesa e literatura. Eu amava lecionar. Tive que me aposentar por invalidez. Desenvolvi síndrome do pânico, depressão e ansiedade, não conseguia sair de casa. A gente perde todo o controle emocional.
Logo que voltei a mim, corri para a internet. Na época não se falava em feminicídio, era crime passional. Levei um susto quando vi a quantidade de crimes desse tipo. Não fazia ideia de que eram tantos.
Naquele momento eu pensei: não conheço meu país. Não conheço esse problema tão grave. O que posso fazer para mostrar às pessoas a dimensão do problema? E aí nasceu meu projeto.
Passei a buscar informações em jornais, portais de cidades e blogs. Fiz primeiro uma página no Orkut, depois migrei para o Facebook, Instagram e realizei meu sonho de ter um site. Foram muitos anos com visibilidade zero, mas nunca desisti. No início, colocava só imagens de flores e o registro das vítimas. Só quando comecei a colocar fotos foi que ganhei alguma visibilidade. As pessoas não se importam com números. Só conseguem levar um choque para a realidade quando veem os rostos.
Eu busco no Google: “foi morta pelo”. É a busca que traz mais resultados. Tem casos que demoram para descobrir, teve um de fevereiro que só foi descoberto agora, de uma advogada de Petrópolis. Ninguém acredita quando eu falo, mas eu me lembro de cada vítima que já postei. Meu sonho é um dia não ter o que postar.
Tenho parceria com uma socióloga, um professor de jornalismo do Rio e uma advogada da Bahia que é disponível “pro bono” para qualquer pessoa que eu indique. Mas na minha cidade, sou vista como uma pessoa problemática que fica postando foto de mulher morta.
Desde que comecei o projeto, já registrei entre 20 mil e 30 mil vítimas. A maioria dos casos não chega à mídia. Ficou banal. Ninguém tem interesse. Só alguns casos têm maior alcance, ou por serem muito chocantes ou por envolverem pessoas brancas e ricas. Enquanto a sociedade não acordar, não discutir, isso não vai mudar. Aumentar a pena não resolve, o que resolve é a educação, a discussão.
Minha filha caçula, Lailah, foi a primeira a ver a irmã no IML. Ela falou: “Ninguém vai vestir minha irmã, eu que vou vesti-la”. Eu não queria deixá-la entrar no necrotério, mas falaram que ela era maior de idade e podia entrar. Acho que isso mexeu demais com ela. Um ano e oito meses depois, ela cometeu suicídio, aos 21 anos.
Nós, as famílias, somos vítimas secundárias. Toda a família fica destruída, adoecida. Tem que ter uma estrutura, profissionais especializados, para que as sequelas sejam as menores possíveis.
ANAHI MARTINHO / Folhapress