– Você acha possível esquecer um grande amor só por causa da distância? – perguntou o homem velho, com roupas de quem dorme na calçada, barba sobrando, cabelos crespos, ralos no topo, longos e acinzentados nas laterais.
A pergunta inesperada dirigida ao adolescente que se preparava para lavar o carro do pai no meio da rua vazia deu início a uma sequência de situações que iria provocar ao seu final um mal-estar profundo na família do jovem inquirido. E o velho que fez a pergunta só queria um pouco de atenção para a história de vida dele, marcada por um grande amor e uma separação muito doída, quase um bolero.
O bolero é assim: um vai e vem malemolente. Na dança, o casal se move devagarinho para um lado e aí dá uns tranquinhos, umas puxadinhas de cabeça, antes de seguir no sentido contrário, tudo muito junto, muito colado. E aquelas letras cheias de ditas e desditas amorosas pulsando no ritmo cardíaco dos bongôs. “Besameeee, besame muuuuuucho”, como se fosse a última vez. Beija-me porque tenho medo de te perder para sempre, te perder después.
Em um tempo sem boleros, os amantes isolados ainda temem a distância como a noite teme o fogo. O adolescente recém-enamorado está sozinho em seu quarto e contempla a sua garota pela tela do notebook durante a aula on line. Sua escola optou pela plataforma na qual o professor consegue visualizar a presença de todos os alunos, pode chamar a atenção ou perceber se algum deles se ausentou. Por sua vez, os alunos enxergam o professor e todos os seus colegas.
Dizem que a distância traz o esquecimento, mas o apaixonado não concebe esta razão. Não concebe porque a sua amada o faz entender os seus prórios pensamentos, torna cristalina a sua maneira de ver o mundo.
A quarentena imposta pela pandemia provocada pelo coronavírus separou o jovem casal logo depois que os dois se conheceram nos primeiros dias de aula. Vieram de escolas diferentes e agora começavam a experimentar o primeiro ano do ensino médio num ambiente totalmente desconhecido. De repente, se viram isolados, distantes um do outro e sem possibilidade de um encontro no dia seguinte – o espaço de tempo futuro mais alongado para quem tem esta idade. Por isso, não deu nem para chamar de namoro os poucos momentos a sós que compartilharam. Não houve chance nem para uma troca de beijos na festinha que estava marcada para o final daquela semana em que tudo parou e as aulas foram suspensas.
Com o note no colo e o celular ao lado, ela fica à vontade para dizer o que frente a frente poderia ser filtrado pela vergonha. Desinibida, dispara uma mensagem ao seu garoto que também divide a atenção entre a aula virtual e as notificações que piscam na tela do smartphone: “Não existe um momento do dia em que eu possa me separar de você. O mundo parece diferente quando você não está comigo”. Mais para impressionar do que para convencer, ele lembra as aulas de espanhol e digita veloz: “Más allá de tus labios / Del sol y las estrellas / Contigo em la distancia / Amada mía, estoy”.
Sem imaginar que estes versos pudessem ter um dia embalado os seus avós, o jovem ensaiava agora os primeiros passos de um bolero virtual inacabado, distante e isolado.
Longe da pandemia, muitos anos atrás, outro adolescente acabara de descer do apartamento da família naquela hora morta após o almoço de domingo. O dia claro tinha o ar fino das tardes de inverno no sul do país. O sol das 14h e o céu sem nuvens disfarçavam o friozinho de maio. Apesar da proximidade do centro da cidade, a rua estava completamente deserta e quando o jovem ensaiava a coragem para enfiar a mão na água gelada do balde e talvez iniciar a limpeza da Brasília do pai, a voz de barítono trincou o ar gelado: “Dicen que la distancia es el olvido / Pero yo no concibo esta razón / Porque yo seguiré siendo el cautivo / De los caprichos de tu corazón”.
Era a primeira vez que o rapaz ouvia uma voz tão poderosa como aquela e assim, frente a frente com o dono da voz, sentia como se fosse um espectador privilegiado de um show particular. Mas, ao mesmo tempo, a imagem degradante do cantor assustava o rapaz. O velho tinha um cobertor puído e mal-cheiroso sobre o corpo frágil, magro e miúdo. Não havia dúvida: era um mendigo, um morador de rua soltando um vozeirão improvável para interpretar “La Barca”, sucesso mexicano dos anos 1950.
Já adulto, o estudante voltaria a ouvir histórias como a que estava presenciando, mas naquele momento, ali, no meio da rua vazia, tudo era novo para seus olhos novos, tudo era surpreendentemente espetacular. Ele estava diante de um pobre coitado que jurava ter vivido uma vida de luxo e glamour, que havia cantado nos melhores cabarés de Buenos Aires, e sim, que fora um cantor renomadíssimo, aplaudidíssimo nos palcos do seu país, adorado por homens e amado pelas mulheres. O velho era um romântico e como nos temas dos boleros que cantava teria havido uma inatingível musa que o desprezara e a quem ele realmente havia dedicado seu sincero amor. E por isto, meu jovem, ele estava ali, cantando e pedindo esmola, restos de comida, ou até mesmo um pouco de atenção.
A desilusão o fez largar tudo, só não apagou o traço marcante de sua personalidade exibicionista. O estudante tinha diante de si um homem que fez da mágoa amorosa o motivo para viver nas ruas, mas que ao mesmo tempo precisava contar seu drama ao mundo. Acima de tudo era um artista dono de um poder vocal impressionante e era esta condição que impunha o paradoxo em questão. De que valeria se atirar na miséria daquela maneira se a humanidade não soubesse as suas motivações?
Longe dos palcos, ele ainda precisava do reconhecimento público, da admiração e porque não, da compaixão de quem o encontrasse pela frente. A cada demonstração dos seus talentos vocais o que ele buscava era justamente uma reação como a daquele jovem. Como poderia um cantor de boleros tornar-se um mendigo? Sobretudo queria ouvir: “por que isto aconteceu com você?”, para aí sim desfiar o rosário da sua paixão não correspondida.
Como em todo bom espetáculo, a surpresa provocada no público é parte da marcação de cena detalhadamente estudada. A miséria serviu-lhe de cenário, uma extensão do seu show em busca do aplauso.
A esta altura a limpeza do veículo já estava esquecida e o rapaz experimentava uma confusão terrível de pensamentos e sensações, sobretudo porque a imagem do maltrapilho não combinava com aquela voz maravilhosa. Mas ela, a voz, era a prova irrefutável de que tudo aquilo só poderia ser fruto de uma realidade intensa e verdadeira. Não havia mais nada a fazer senão puxar o cantor pedinte pela mão, subir seis lances de escada e entrar no apartamento para anunciar à família: “Ei, pessoal !!! Olhem quem eu encontrei na rua. Vocês não vão acreditar”. E não iriam mesmo. Os irmãos estavam em seus mundos. A mãe, assustada, murmurou alguma coisa, saiu e voltou com um cobertor usado, porém bem mais novo do que aquele nos ombros do visitante. Foi à cozinha e serviu um prato com arroz, frango assado e salada de batata que homem comeu ali mesmo, no corredor de entrada.
A tarde parada do domingo começou a balançar em ondas de tensão. O pai foi acordado no meio da sesta com a barulheira e chamou a mãe para uma conferência. Onde o filho estava com a cabeça? Trazer um mendigo prá dentro de casa! O cantor ainda ensaiou um bolero, já quase na sala, prá ver se conquistava o resto da família assim como fizera com o jovem que o acolhera. Mas o vozeirão intruso precipitou tudo. Era o fim: um homem estranho e sujo gritando no meio do apartamento… Cantor e filho iludido voltaram para a rua por ordem da mãe, porta-voz do pai que – se saísse do quarto – poderia dar um fim ainda mais grotesco àquela apresentação artística inesperada e totalmente fora da rotina familiar.
Como que satisfeito com o resultado da apresentação do seu bolero particular, sabedor do impacto que acabara de provocar, o velho crooner não demonstrou constrangimento e nem se fez de ofendido. É de se imaginar que não tenha sido a primeira vez que ele dava um espetáculo daqueles. O jovem tampouco parecia arrependido. Seguiram lado a lado por alguns metros pelo meio da rua vazia no rumo que levava a uma longa descida, caminho natural de saída da cidade.
Após tanta confusão, andavam quietos e serenos, numa bonança combinada sem palavras. De repente, o cantor apressou o passo na intenção inegável de se afastar, no que foi imediatamente entendido pelo acompanhante. Sem olhar para trás, chacoalhou como se fosse uma capa o cobertor que havia recebido e abriu o peito pela última vez naquela tarde fria. O jovem, parado, pensava nas distâncias ainda por se abrirem na sua vida e na certeza de que naquele instante estava a ouvir os primeiros versos do mais lindo bolero que ninguém jamais ouviria.