SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após a conquista da medalha de bronze na modalidade street do skate nos Jogos Olímpicos de Paris, a brasileira Rayssa Leal expressou o desejo de explorar a capital francesa para se divertir em busca de obstáculos não convencionais, diferentes daqueles milimetricamente pensados e espalhados pela pista montada para o evento esportivo.
A jovem da pequena cidade de Imperatriz, no Maranhão, dava ali uma clara demonstração da essência da cultura do skateboarding.
Se hoje é uma das modalidades mais badaladas das Olimpíadas, o skate carrega desde sua origem aspectos mais tradicionais relacionados à prática como a transgressão, a forma de se vestir, o estilo musical e a camaradagem.
Para Bob Burnquist, 48, maior ícone do skate no Brasil, mais do que as competições e o estrelato, há uma relação com o esporte que chega ao nível espiritual.
“Quando você sai do holofote e vai para a cultura do skate, é um estilo de vida, é uma evolução. Pelo menos a minha visão é muito mais espiritual, artística, do que competitiva”, disse Burnquist à Folha.
Nascido no Rio de Janeiro e criado em São Paulo, ele ganhou recentemente uma série documental da HBO na plataforma Max, dividida em quatro episódios, que traça um panorama de sua vida desde as primeiras descidas em uma pista de skate perto da casa da família na zona norte da capital paulista até o sucesso estrondoso alcançado no exterior com performances que entraram na história e o fizeram personagem de videogame.
Burnquist afirma que as competições e as vitórias tiveram um papel importante para a carreira que construiu, mas enfatiza que elas representam uma parte menor dentro de sua vida em cima do skate. Para ele, antes de tudo, trata-se de uma forma de expressão.
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*Folha – Você vivenciou o skate desde a fase em que era reprimido pela polícia em São Paulo, tornou-se um dos grandes nomes do esporte e o viu chegar até os Jogos Olímpicos. Como foi acompanhar toda essa trajetória da modalidade nas últimas décadas?*
*Folha -* Eu vejo o tamanho que o skate alcançou agora e penso: “Eu já sabia, é legal mesmo, eu sempre soube, vocês é que estavam demorando para descobrir” [risos]. É óbvio que dá orgulho ver aonde o skate chegou. E, ao mesmo tempo, de certa maneira, a gente continua tendo que correr da polícia, se vai andar em um lugar em que não pode.
Ver chegar a este ponto é bom porque traz oportunidade. Pistas são construídas, o mercado cresce, patrocinadores entram. Em paralelo a isso, penso que também é importante manter a essência do skate, continuarem os eventos culturais, as interações que são nossas, os formatos de competições diferentes do olímpico. Temos que pensar no que mais tem para fazer no lado cultural, no progresso técnico do skate, acho que é isso que é bacana de correr atrás.
*Folha – Tivemos nos Jogos de Paris o Andy Macdonald competindo pela Grã-Bretanha no skate park aos 51 anos, que será sua idade em Los Angeles-2028. Você nutre algum desejo de participar de uma edição olímpica?*
*Folha -* Enquanto presidente da CBSk [Confederação Brasileira de Skateboarding, entre 2017 e 2019], tentei ajudar atrás das câmeras para a galera poder competir e o investimento ir para a confederação correta. Enxergo dessa forma minha participação olímpica. Quando vejo os brasileiros competindo e ganhando medalhas, sinto que eu estou lá, porque sei o quanto de trabalho foi realizado para chegarmos aonde estamos.
Agora, se eu fosse para uma Olimpíada, manteria uma intenção competitiva, não iria apenas para participar. Se for, vou para ganhar, e daí entro em outro modo. Mas eu não tenho essa vontade, essa ambição de falar: “Queria tanto, é um sonho de criança poder competir na Olimpíada”. Não é. Se eu fosse do atletismo ou da ginástica, provavelmente gostaria de participar. Se eu estivesse nesse mundo, a Olimpíada seria um norte. Mas, no skate, a Olimpíada nunca foi um norte. Era quase um sul [risos].
Entendo que, no skate, não é o meu país contra o seu país. Nunca foi. Vejo o skate como o meu jeito de andar contra o seu jeito de andar. É quase como você pintar em uma competição. Não tem como falar que um quadro é mais bonito. Quando você sai ali do holofote e vai para a cultura do skate, é um estilo de vida, é uma evolução. Pelo menos a minha visão é muito mais espiritual, artística, do que competitiva. Apesar de eu já ter ganhado muitos eventos, nunca senti que a competição era a razão de fazer o que eu faço.
*Folha – Como você classificaria sua relação com o skate?*
*Folha -* O skate é espiritual para mim, é uma forma de expressão artística, dentro de uma trajetória de um ser humano que está aprendendo, e com a escolha do skate para ter uma forma de expressão. Quando consigo acertar uma manobra nova, se é algo que ninguém nunca fez, é uma forma de manifestação, e sei quanto isso é legal, quanto é importante e inspirador, quanto me faz querer aprender mais. Nos eventos em que entrava, participava pela glória e por ser a manifestação de uma habilidade humana, de poder falar: “É possível fazer isto”. Para mim, é mais pela inspiração, pelo que você é capaz de fazer e como pode tocar as pessoas do que para ganhar dinheiro.
*Folha – Como conciliava esse lado mais espiritual com as competições e os eventos com patrocinadores?*
*Folha -* Quando estava em algum compromisso profissional, era: “Agora estou colocando um terno e vou andar de skate porque tenho que andar, está no meu contrato, e vou lá e faço o que tenho que fazer dando o máximo da minha energia”. Mas o que me move é o depois, é no quintal de casa sozinho, filmando, pensando em manobras, construindo obstáculos.
*Folha – A série aborda um momento em sua carreira na qual você opta por não assinar um contrato com uma grande marca dos Estados Unidos. Houve algum arrependimento?*
*Folha -* Muito pelo contrário. Quando você gasta seu dinheiro e compra um negócio ruim, está demandando uma indústria ruim. Mas, se começa a fazer um consumo consciente, você demanda mercado, direciona e mais pessoas conseguem consumir conscientemente. É importante que os skatistas prestem atenção no mercado do skate e comprem e deem apoio a lojas e marcas que são, de fato, do meio. Isso foi o começo desse mundo de fora entrando, com uma galera que não tinha nada a ver com a gente, uns grafites neons nas pistas, tudo errado [risos]. E a gente não se identificava. Então, tinha a responsabilidade de defender o que era nosso.
*Folha – Como você acompanha os brasileiros bastante jovens se destacando em competições internacionais, incluindo as Olimpíadas?*
*Folha -* Acho muito legal, é demais. Mas acho que tem uma pressão bem maior do que na minha época, que não sei quanto é saudável, sendo atletas tão jovens. Eu mesmo me tornei profissional aos 14 anos e, depois de ganhar um campeonato, fiquei superconfiante. No seguinte, terminei em oitavo, tanta a pressão. Imagina se fosse hoje, a atenção seria trocentas vezes maior, e acho que essa interação via rede social cria um contato mais direto, que, às vezes, pode não ser tão saudável, é um bombardeamento.
Isso traz um crescimento da mentalidade de que é preciso vencer. E é preciso entender que vencer não é tudo. Que também é preciso se manifestar da sua maneira, dar sequência à cultura do skate, à tradição de andar na rua, mesmo tendo pista para andar. Não é só sobre um ciclo competitivo, é uma manifestação artística.
*Raio-X*
Bob Burnquist, 48
Natural do Rio de Janeiro e criado em São Paulo, é um nome histórico do skate mundial. Especialista na modalidade vertical, é o maior vencedor dos tradicionais X-Games, nos Estados Unidos, com 30 medalhas. Foi presidente da CBSk (Confederação Brasileira de Skate) de 2017 a 2019
LUCAS BOMBANA / Folhapress