Poeira Pura faz da roda de samba uma festa para pessoas negras e LGBTs

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Nas imagens gravadas com filtro quente, transborda na tela o calor do ambiente regado a álcool, celebração, fumaça de cigarros, música e sedução. Gente preta, gente de tons de pele que Gilberto Gil já definiu como “povo chocolate e mel”, tênis Nike, Tranca Rua, beijo gay, beijo triplo, corpos sem camisa, decotes, repique de mão, guitarra, dispositivos eletrônicos, Zé Pelintra, samba no pé.

O refrão sustenta: “Meu samba é a cura em forma de suor e febre/ Putaria, liturgia, o antigo e o novo”. “Suor e Febre” é o primeiro clipe do Poeira Pura, marcando o início do trabalho autoral da roda de samba acústica que se popularizou no Rio de Janeiro a partir de 2021, e que já realizou edições em São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Salvador.

“Poeira Pura, o nome, já é uma provocação”, diz Mateus Professor, criador da roda ao lado de Rogério Família. “Porque a poeira é feita de impureza. Poeira pura, na verdade, é pura impureza. O que a gente faz é assumir essa poeira da rua, do movimento. A poeira que tá no ar”.

“Suor e Febre” tem, portanto, um valor de manifesto em sua poética de encruzilhada, com versos que cruzam veneno e remédio, putaria e liturgia, antigo e novo. É a tentativa de levar para a lógica de banda, de palco, o pensamento que vem guiando a roda desde seu nascimento em 2019. Um pensamento radicalmente inclusivo no olhar sobre a sociedade, e sobre o samba –mais do que isso, a partir do samba.

“De vez em quando, a galera do ambiente do samba tradicional vem falar da nossa roda: ‘pô, os caras vão ficar se beijando na boca?'”, conta Família. “Eles vêm dizer que é ‘samba de veado’. Eu respondo que é samba de veado, de macumbeiro, de puta, de polícia, de desempregado. É samba de gente”.

As redes sociais do Poeira Pura refletem e potencializam essa postura, com imagens do público que retratam a beleza negra, carregada na sensualidade. “‘Desde o início a gente queria investir numa estética mais arrojada. Mais urbana, menos saudosista”, explica Professor.

“A ideia é comunicar com uma galera nova que trafega pelo funk, pelo hip-hop, pela cultura afrourbana da contemporaneidade. Uma comunicação mais sensual, mais noturna, mais quente, para falar com quem curte Anitta, Ludmilla, Racionais, Oruam”, completa Família.

Mais do que simplesmente uma opção de marketing, eles buscam fundamento num olhar que entende o samba como cultura viva, pulsante. Isso implica na presença do sexo e da alegria — assim como da luta política. O Poeira Pura se afirma como espaço inegociável da negritude.

“Poeira Pura não é excludente nem exclusivo, porém é da comunidade preta. Quem criou o samba foi a comunidade preta. E criou para ser um lugar de acolhimento”, Família aparece falando em um vídeo publicado no perfil da banda no Instagram.

Noutro post, é destacada uma fala de Marina Reis, produtora do Poeira Pura. “Se você, que não é pessoa negra ou originária, não consegue compreender que esse espaço não é pensado para atender prioritariamente suas demandas e desejos, um recado: não venha! O Poeira não é pra você.”

Portanto, o samba como espaço modelo da ideia de democracia racial, na qual se harmonizam livremente e sem conflito negros e brancos, pobres e ricos, partido-alto e bossa nova, é uma ideia que o Poeira Pura procura tensionar.

“Existe a ideia de conservar o samba num passado ideal que nunca existiu. A gente tem que escalar esse conflito, porque já não cabe mais esse papo de que o samba é para todo mundo, que o Brasil é uma democracia racial, que racismo não existe, que machismo ficou no passado. A gente vai negociando de acordo com o momento, mas esse dedo na ferida a gente nunca deixa de colocar.”

A roda –que ficou famosa na Casa do Nando e hoje acontece na Casa Savana, ambas no Centro do Rio– abre espaço para canções como “Banho de Folhas”, da Luedji Luna, e “Baby 95”, da Liniker, mas elas são exceções. O repertório é fundamentalmente garimpado da história do samba, dos clássicos aos sucessos.

A dinâmica leva em conta a lógica orgânica da roda, sobretudo por não usar aparelhos amplificadores –o que faz com que a banda dependa do gogó da plateia.

Já na passagem para o estúdio, trabalho no qual o Poeira Pura dá seus primeiros passos, a ideia é explorar outras sonoridades, como mostra “Suor e Febre” –em novembro, eles apresentam o segundo single no Circo Voador, dentro da programação da Flup, a Festa Literária das Periferias.

Ter o samba, portanto, não como limite, e sim potência. “Talvez o que falte para o samba como movimento é se entender como árvore”, diz Professor. “Porque a raiz nutre e sustenta. Mas quem transforma o nutriente que a raiz capta em alimento para a planta é a fotossíntese, que é feita na folha.”

LEONARDO LICHOTE / Folhapress

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