KAZAN, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Após quatro anos de tensão, China e Índia chegaram a um acordo para colocar fim à disputa em sua fronteira na região do Himalaia. O anúncio ocorre às vésperas do encontro de seus líderes na reunião do Brics em Kazan (Rússia), que marca uma tentativa de normalização na relação das rivais nucleares.
O acordo visa regrar o patrulhamento das regiões da chamada linha de controle real, que marcam parte da fronteira de 3.488 km entre os dois países. Pequim ganhou uma guerra contra Nova Déli em 1962, e desde então crises estouram pontualmente.
A mais recente foi em 2020, quando 20 soldados indianos e 4 chineses morreram numa escaramuça bizarra, com paus e pedras, na belíssima região montanhosa de Ladakh. Dois anos depois, houve novos embates.
O anúncio foi feito pelo principal burocrata da chancelaria indiana, Vikram Misri, e ainda não foi comentado pelos chineses. O premiê Narendra Modi e o líder Xi Jinping estarão à mesa no jantar de gala oferecido por Vladimir Putin em Kazan nesta terça (22).
O evento marca o início da 16ª reunião dos Brics, bloco que incluía originalmente também o Brasil e, desde 2010, a África do Sul. Ela é a primeira após a maior expansão do grupo, com a chegada do Irã, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Egito. A Arábia Saudita é tratada como membro, mas não enviou lideranças.
Há a expectativa de os dois líderes se reunirem separadamente, mas nenhuma das duas delegações confirmou isso até aqui. O relaxamento das tensões não irá encerrar os motivos fulcrais de rivalidade entre os países, cujas populações somam 2,8 bilhões dos 8 bilhões de humanos.
A Índia segue sua busca por assertividade amparada no bônus demográfico de uma enorme população jovem. É potência nuclear com grandes capacidades convencionais, e consegue ser parceira dos Estados Unidos no grupo anti-China Quad enquanto segue como cliente privilegiada de petróleo e armas de Putin, maior aliado de Pequim.
Não condenou a invasão russa da Ucrânia, como fez o Brasil, seu parceiro de Brics, embora ambos concordem em não adotar sanções que não sejam determinadas pelo Conselho de Segurança da ONU. A reforma do órgão, aliás, era um dos temas que o presidente Lula (PT) iria levantar na cúpula, à qual agora ele só vai participar por vídeo devido à queda que o deixou de molho em Brasília.
Já a China é a China, a potência emergente do século 21, em oposição ao poder estabelecido de Washington. Essa Guerra Fria 2.0 define uma lógica de blocos, com países como a Índia e o Brasil tentando navegar de forma autônoma, com graus de sucesso distintos.
Pequim também é a principal parceira do arquirrival da Índia, o Paquistão. Praticamente não há projeto de infraestrutura e de cooperação militar de Islamabad sem a participação chinesa.
Rivalidade à parte, a disputa é ruim para os negócios. Diversos projetos chineses foram paralisados na Índia, que passou a controlar o investimento direto do vizinho em sua economia. As restrições fecharam o mercado indiano de carros elétricos para atores como a BYD e a Great Wall Motors.
Ainda assim, as importações chinesas de Nova Déli cresceram 56% desde 2020, segundo dados do governo indiano. Hoje, o déficit do país com Pequim é de US$ 85 bilhões anuais.
Se a aproximação se consumar, será um trunfo para Putin. Após a expansão costurada com a China, o bloco tem ganhado um contorno de instrumento geopolítico dos aliados na Guerra Fria 2.0.
Com a eventual normalização consumada sob seus auspícios, o russo reforça sua “tour de force” diplomática, que começou já no domingo (20), quando recebeu o presidente dos Emirados, xeque Mohamed bin Zayed al-Nahyan.
Novas expansões não deverão ser anunciadas nesta cúpula, mas os Brics vão inaugurar a categoria de países parceiros do bloco. Uma reunião ampliada, com quase 40 países e a presença do secretário-geral da ONU, António Guterres, ocorre no encerramento da reunião, na quinta (24).
Para Putin, fustigado no Ocidente devido à guerra, é uma oportunidade de demonstrar que o seu isolamento não encontra eco unânime na comunidade internacional.
IGOR GIELOW / Folhapress