Filme lembra um marco arquitetônico paulistano que veio abaixo em chamas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A cineasta brasileira Denise Zmekhol tinha acabado de acordar no dia 1º de maio de 2018 em Berkeley, nos EUA, quando seu irmão, Ivan, ligou. “O prédio do nosso pai pegou fogo e desmoronou. Não sobrou nada.”

Ivan se referia ao edifício Wilton Paes de Almeida, no largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Considerado o principal projeto do arquiteto Roger Zmekhol, o prédio ocupado por centenas de sem-teto foi tomado pelo fogo e, uma hora e meia hora depois, desabou.

Denise ficou desnorteada com a tragédia, que matou sete pessoas, deixou quase 300 famílias desabrigadas e destruiu completamente a mais elogiada das criações do seu pai. Amigos mandavam novas imagens do incêndio e dos escombros, e jornalistas a procuravam para comentar o episódio.

Àquela altura, a diretora preparava havia alguns meses um documentário justamente sobre aquele edifício de Zmekhol, um filho de imigrantes sírios que nasceu em Paris e veio para o Brasil ainda criança. Em São Paulo, tornou-se professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e morreu em 1976.

Atordoada com o desastre, a cineasta já não sabia mais qual filme fazer. Cogitou até mesmo abandonar o projeto.

Pouco mais de seis anos depois desse impasse, o documentário de Denise tem as primeiras exibições públicas no Brasil. “Pele de Vidro”, nome do filme que faz referência à expressão pela qual o edifício ficou conhecido, foi apresentado no Festival do Rio e ganha nos próximos dias três projeções na Mostra de Cinema de São Paulo.

Depois de participar de dezenas de festivais na América do Norte, na Europa e na Ásia, um percurso que lhe rendeu sete prêmios, o documentário chega à cidade onde tudo começou, a São Paulo que, nas últimas décadas, desprezou o marco do modernismo que é tema da produção.

Naquela época, “curtain wall” entrava definitivamente no glossário da arquitetura internacional. São, grosso modo, as paredes das fachadas que não possuem função estrutural no edifício. Livre do encargo de sustentar o prédio, o “curtain wall” pode ser feito de materiais leves, como o vidro.

Concluído em 1968, o arranha-céu foi uma das primeiras construções brasileiras a lançar mão desse recurso, com vidros do térreo ao 24º andar. “Essa fachada de puro vidro impunha uma diferença estética em relação a outros edifícios corporativos”, diz o arquiteto e crítico de arquitetura Francesco Perrotta-Bosch.

Chamavam a atenção ainda a escadaria circular no térreo e as lajes de fina espessura. “O desenho do Pele de Vidro é de uma sofisticação que, com uma ou outra exceção, põe os projetos corporativos da Faria Lima no chinelo”, afirma.

A arquitetura brasileira vendia ao mundo a imagem de um país promissor, aberto a inovações, e o Pele de Vidro era um dos símbolos dessa fase inspiradora. “Não é que tinha esperança, o Brasil tinha certeza do seu futuro”, diz no filme a arquiteta e urbanista Regina Meyer sobre as décadas de 1950 e 1960.

No entanto, na mesma toada do país, o edifício logo entrou em decadência. As empresas proprietárias acumularam dívidas com a Receita e tiveram que transferir o prédio para o governo federal. Anos depois, o Pele de Vidro virou sede da Polícia Federal, que deixou o espaço em 2003. O processo de degradação era cada vez mais evidente.

Morando nos EUA há quase três décadas, Denise soube da ocupação dos sem-teto em 2016 por meio de uma conhecida que preparava um trabalho de conclusão de curso. Pensou inicialmente em escrever um livro sobre o assunto e, depois, resolveu fazer um filme.

Durante três meses do ano seguinte, ela e uma pequena equipe começaram a ouvir arquitetos que tinham convivido com Roger Zmekhol, como Paulo Mendes da Rocha, e a filmar o Pele de Vidro, mas só do lado de fora.

A cineasta insistiu em conhecer o interior do edifício, mas os coordenadores da ocupação proibiram que ela entrasse. Mais tarde, as investigações mostraram que os líderes do movimento LMD (Luta por Moradia Digna) exploravam os moradores e praticavam as mais diversas irregularidades no prédio.

Denise voltou para os EUA em dezembro de 2016 e, cinco meses depois, o Pele de Vidro virou entulho e pó. Passado o choque inicial, quando quase desistiu de seguir com a produção, a diretora retornou a São Paulo e começou a entrevistar adultos e crianças que tinham vivido no prédio e agora estavam acampados no largo do Paissandu.

Além disso, a equipe obteve imagens surpreendentes do desastre -mesmo para um evento ostensivamente registrado pelas câmeras. Por coincidência, um drone que sobrevoava o centro de São Paulo naquela madrugada para as filmagens de um curta de ficção chegou bem perto do prédio em chamas. Esses registros foram cedidos pelo produtor Denis Feijão e pelo diretor Pedro von Krüger.

Denise também conseguiu imagens do momento em que o prédio desmoronou, feitas pelo cinegrafista Gutemberg Gonçalves.

A tragédia deu outro rumo ao documentário. Antes seria um filme sobre o principal edifício de um arquiteto e as histórias dos moradores que o ocuparam. A partir do desabamento, esses aspectos foram mantidos, mas “Pele de Vidro” ganhou um tom muito mais pessoal.

“Ao decidir fazer esse filme, eu queria conhecer as pessoas que viviam no prédio, mas também tinha uma vontade incrível de entender melhor o meu pai como artista. Seria uma maneira de me reconectar com ele”, conta Denise, que tinha apenas 14 anos quando o pai morreu em decorrência de um infarto, aos 48.

“Quando o prédio caiu, eu senti que havia perdido a última oportunidade de conhecê-lo. Foi como se ele tivesse morrido de novo”, ela diz.

A partir daí, às duas figuras centrais do filme, Roger Zmekhol e o edifício Pele de Vidro, juntou-se outra, a própria Denise. Depois de alguma hesitação, ela assumiu a narração em primeira pessoa e lembra ao longo de “Pele de Vidro” os gestos afetuosos do pai e também os desencontros entre eles.

Para Perrotta-Bosch, o documentário representa uma oportunidade para que o trabalho de Zmekhol seja, enfim, reconhecido na cidade onde trabalhou intensamente.

O arquiteto franco-brasileiro é autor de cerca de 285 projetos, dos quais cem foram construídos, a maioria na capital paulista. Além do Pele de Vidro, desenhou edifícios como o Conde Andrea Matarazzo -no cruzamento da avenida Paulista com a alameda Casa Branca, na esquina oposta ao Masp- e o Barão de Itatiaya -na esquina da Paulista com a rua Padre João Manuel, ao lado do Conjunto Nacional.

Perrota-Bosch lembra que Zmekhol foi muito influenciado pelo racionalismo de Mies van der Rohe, arquiteto alemão que cultuava a simplicidade das formas e a luz natural. “Uma marca constante da obra do Zmekhol é o impressionante apuro do detalhe. Ele tinha um rigor matemático na busca do equilíbrio, da simetria.”

Ao lado de Denise, o crítico prepara um livro sobre o arquiteto, que deve ser lançado no ano que vem ou em 2026.

Pele de Vidro

Quando: três sessões na Mostra de SP: no Museu da Língua Portuguesa no dia 25/10, às 19h; no Espaço Augusta (sala 2) no dia 26/10, às 18h30; na Cinemateca (sala Grande Otelo) no dia 28/10, às 15h40. Sessões especiais nos dias seguintes: no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) no dia 31/10, às 19h; e na Ocupação Nove de Julho no dia 1º/11 às 19h30

Classificação: livre

Direção: Denise Zmekhol

NAIEF HADDAD / Folhapress

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