MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Em um novo depoimento dado nesta quarta-feira (23), Gisèle Pelicot, a francesa que por quase dez anos foi drogada por seu marido, Dominique Pelicot, e estuprada por ele e dezenas de homens, disse que não sabe como vai se reerguer.
“Eu me preparei para esse julgamento, mas ainda não entendi o porquê. Estou tentando entender como esse marido, que era o homem perfeito, chegou a isso”, disse a vítima em um tribunal de Avignon, dirigindo-se ao ex-companheiro.
“Tivemos 50 anos de vida em comum. Três filhos e sete netos. Você foi um homem gentil, atencioso, nunca duvidei da sua lealdade. Compartilhamos nossas risadas, nossas dores. Você atravessou momentos difíceis e eu nunca te abandonei. Muitas vezes eu te disse: ‘Que sorte eu tenho de te ter’.”
“Sou uma mulher destruída e não sei como vou me reconstruir. Aos 72, não sei se terei tempo o suficiente para entender tudo o que aconteceu comigo.” O julgamento deve seguir até 20 de dezembro.
Desde setembro, o caso está no debate público na França. Os detalhes dos crimes e a dimensão do julgamento mobilizam uma série de questionamentos, que vão da pornografia online à legislação sobre consentimento.
Segundo as investigações, Dominique, 71, fazia Gisèle, 71, consumir remédios com efeitos sedativos sem ela saber. Com ela desacordada, praticava atos sexuais sem a sua autorização. Por meio de chats online, convidou mais de 70 homens a fazer o mesmo. A maioria dos crimes foi cometida na casa deles, em Mazan, no sudeste do país, com tudo filmado pelo marido.
Apesar de os abusos, praticados desde 2011, terem sido descobertos em 2020, o conhecimento sobre o caso explodiu nas últimas semanas, com o início do julgamento de 50 réus. A pedido de Gisèle, o julgamento é público, sob a justificativa de que “a vergonha tem que mudar de lado”.
“O caso tem gerado enorme indignação. O assunto chegou a todos os espaços sociais e está havendo uma reflexão sobre cultura do estupro, gênero e poder como um todo”, diz a advogada Alexandra Lachowsky, membro do conselho da Women for Women France, organização que atua no combate ao abuso doméstico.
Para Maïna Cerniawsky, vice-presidente da associação Osez le Féminisme (atreva-se ao feminismo), o caso revela a banalização do estupro. “Esse caso envolve homens de todas as idades, classes sociais e profissões. A maioria das conversas é sobre como poderia ter sido qualquer homem”, afirma.
Gisèle aludiu a essa mesma ideia em seu depoimento. Nesta quarta, ela afirmou que o caso a fez rever suas expectativas em relação a quem pode ser um estuprador ele não é simplesmente “alguém que você encontra tarde da noite em um estacionamento”, disse.
“Quando ouço essas mulheres [as esposas dos acusados] dizerem que seus maridos não são estupradores, eu pensava o mesmo. Quando decidi levantar o sigilo, queria que elas dissessem: ‘Se a senhora Pélicot fez isso, nós também podemos’. Não quero mais que elas sintam vergonha. A vergonha não é nossa, é deles. Não expresso nem minha raiva nem meu ódio, mas uma determinação de mudar esta sociedade”, afirmou ela.
Uma série de temas entrou em discussão a partir do caso Mazan. “As mulheres estão se perguntando: ‘Eu já fui vítima de violência de gênero? Como eu identifico isso? Como isso me afetou? Estou segura? O sistema judicial me protege? O que mudou na França desde o [movimento] Me Too, em 2017?'”, conta Lachowsky.
Um dos alvos é a legislação francesa, com debate sobre a noção de controle coercitivo e, principalmente, consentimento. Embora Dominique tenha se declarado culpado, a estratégia de defesa da maioria dos réus vai na linha de que o estupro foi sem intenção, com homens alegando que foram manipulados pelo marido ou que achavam que Gisèle, mesmo inconsciente, havia concordado em participar de uma espécie de jogo erótico.
O estupro é definido na França como todo ato sexual cometido por meio de “violência, coação, ameaça ou surpresa”. Não há menção à necessidade de consentimento, nos moldes da lei espanhola, de 2022, pela qual todo abuso sexual sem consentimento é considerado estupro. Pelo texto espanhol, passividade e silêncio não podem ser entendidos como autorização ”só sim significa sim”, diz o mote das ativistas.
É um debate delicado, porque não há consenso entre as feministas francesas. Uma corrente defende a inclusão do consentimento na lei, enquanto outra é a favor da legislação atual, onde é a intenção do agressor que define o crime de estupro.
“A manipulação psicológica faz parte da estratégia de agressores, e o consentimento pode ser obtido por meio de dominação ou dependência financeira”, diz Cerniawsky. “O receio de parte das feministas é que a vítima seja colocada sob escrutínio, para definir se ela consentiu ou não, em vez de focar no agressor.”
Para a advogada Lachowsky, é essencial que o estupro seja entendido como ausência de consentimento voluntário mútuo. “Incluir [na lei] a noção de consentimento, esclarecendo o que é, ampliaria o escopo de proteção para garantir que mais tipos de violência sexual sejam cobertos”, diz. “Ajuda a reforçar a ideia de que as vítimas nunca deveriam ser culpadas pela sua incapacidade de consentir.”
Outro tema é o papel de operadores sanitários. Ao longo dos anos de agressões sexuais, Gisèle procurou ajuda médica devido a lapsos de memória, provável efeito dos remédios, e de problemas ginecológicos, incluindo episódios de doenças sexualmente transmissíveis. Em nenhum atendimento, a submissão química foi investigada.
Também a pornografia online entrou na mira. Dominique mantinha um arsenal de vídeos e fotos dos atos cometidos contra a mulher e compartilhava esse material com outros homens. O chat usado para convidá-los para os estupros tinha o nome de “à son insu”, sem ela saber, indicando uma categoria de consumo da erotização de mulheres inconscientes.
Ainda é cedo para saber a que mudanças o caso Mazan pode levar. Muito vai depender das sentenças e do engajamento de forças políticas, considerado tímido até o momento, também devido à instabilidade que atravessa o sistema francês, com um ministério recém-empossado. “Há a preocupação de que os políticos estejam tratando o caso como algo extraordinário, em vez de uma confirmação da cultura do estupro”, diz Cerniawsky
No curto prazo, porém, alguns efeitos são notáveis. “Há uma percepção coletiva de que estamos enfrentando uma epidemia de violência de gênero, enraizada no sistema patriarcal com seus pilares de dominância masculina, impunidade e violência institucionalizada”, afirma Lachowsky. “No longo prazo, pode ser um ponto de virada na legislação francesa, se a sociedade decidir que assim deve ser.”
MICHELE OLIVEIRA / Folhapress