SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No último dia 15 de outubro, em Nova York, a brasileira Valentina Sampaio sacramentou um caminho sem volta nas passarelas: foi a primeira modelo trans a desfilar no Victoria’s Secret Fashion Show.
Sua presença marca uma nova era da grife americana de lingeries, que após seis anos de hiato decidiu apostar na diversidade. Além de Valentina, mulheres de corpos diversos e modelos de várias idades desfilaram com as asinhas coloridas, elemento tradicional nos eventos da grife.
Nascida em um vilarejo de pescadores no Ceará, Valentina enfrentou dificuldades no início da carreira. Desde cedo, esbarrou em preconceitos e sofreu transfobia, chegando até a abandonar a profissão por um tempo. Em um de seus primeiros trabalhos, ainda na capital cearense, um cliente descobriu que ela era trans e a fez ser demitida.
“Eu já estava no estúdio, o cliente descobriu que eu era trans e achou que minha imagem prejudicaria a campanha da marca dele”, conta. “Esse começo foi tão difícil que, por um tempo, eu desisti. Me sentia inferior, me sentia no lugar errado. Demorei a perceber que sou merecedora sim, que eu tinha que lutar pelo meu espaço.”
A decisão de continuar rendeu frutos que ela nem imaginava. Pouco tempo depois, abandonou a faculdade de moda em Fortaleza e foi morar no Rio de Janeiro. Lá, estreou como atriz no filme “Berenice Procura”. Mas foi como modelo que sua carreira despontou.
Aos 28 anos –e com dez de carreira–, ela hoje se vê consolidada na área. Além da icônica marca de lingeries, destaca entre seus principais trabalhos a capa da Vogue Paris, espaço em que também foi precursora. “Fui a primeira pessoa trans a estampar a capa de uma Vogue. E na capa estava escrito: ‘beleza transgênera’. Quando vi aquilo, passou um filme na minha cabeça”, diz. “Há algum tempo, se eu falasse de todos esses sonhos, iriam desdenhar de mim.”
REPRESENTATIVIDADE
Mais do que o sucesso profissional, Valentina tem outra glória para celebrar: seu grande orgulho é levantar a bandeira de uma comunidade que ainda é, em sua maioria, marginalizada. “Eu não tenho mais medo de andar na rua, não perco mais trabalhos, porque já sabem quem eu sou. Mas na internet ainda sofro preconceito e ataques de ódio”, diz. “Essa vitória não é só minha, é uma celebração para toda a comunidade trans. É sobre poder viver e trabalhar de forma digna.”
Ela se lembra de, quando criança, assistir aos desfiles da Victoria’s Secret pela tevê. A marca, que sempre teve uma quedinha pelo charme brasileiro, tinha Gisele Bündchen como sua principal “angel”, além de um time de tops belíssimas: Adriana Lima, Alessandra Ambrosio, Ana Beatriz Barros, Isabeli Fontana, Izabel Goulart e Lais Ribeiro, entre outras.
“Aquilo me inspirava, eu queria ser como aquelas mulheres. Ao mesmo tempo, não me sentia representada”, lembra. Hoje, ela própria se tornou essa representação, ao lado de Alex Consani, outra modelo trans a desfilar na ocasião. “Fico feliz de estar fazendo parte desse avanço, dessa mudança. Claro que ainda temos um caminho a ser percorrido. Mas temos que celebrar cada passo à frente, cada conquista.”
Vivendo em Nova York há cinco anos, ela hoje se sente em casa na “big apple”, onde chegou em 2019 sem falar um pingo de inglês. “É a cidade que eu amo, onde meus sonhos se realizaram, onde tive grandes oportunidades. Mas também amo o Brasil. Mesmo com todos os problemas, para mim é o melhor dos lugares”, derrete-se.
Quando vem de férias ao país, Valentina é o orgulho da família –que ainda mora no mesmo vilarejo, que fica em Aquiraz, na região metropolitana de Fortaleza. A mãe, professora, e o pai, pescador, sempre a apoiaram, conta.
“Como mulher trans, cresci com medo do futuro. A gente se vê numa situação de portas fechadas apenas por sermos quem somos. Então, fui uma criança adulta, amadureci cem anos em dez”, relata. “Meus pais confiavam em mim, porque eles viam minha responsabilidade e independência. Hoje me sinto muito grata e abençoada por tudo o que conquistei.”
ANAHI MARTINHO / Folhapress